sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Ai Que Fome

“Uma das sedes de nostalgia da infância, e das mais profundas, é o céu da boca. A memória do paladar recompõe com precisão instantânea, através daquilo que comemos quando meninos, o menino que fomos. O cronista, se fosse escrever um livro de memórias, daria nele a maior importância à mesa de família, na cidade de interior onde nasceu e passou a meninice. A mesa funcionaria como personagem ativa, pessoa da casa, dotada do poder de reunir todas as outras, e também de separá-las, pelo jogo de preferências e idiossincrasias do paladar — que digo? Da alma, pois é no fundo da alma que devemos pesquisar o mistério de nossas inclinações culinárias”.
(Carlos Drummond de Andrade)

Nesta crônica o poeta Drummond ressalta o que se pode chamar de memória do paladar. Você já parou para pensar nos sabores experimentados há muitos anos, durante a sua infância? Já percebeu que no mais das vezes aqueles sabores são impossíveis de serem novamente alcançados?

Eu, por exemplo, adoro sanduíche de mortadela. Nos escaninhos de minha memória há um sanduíche de mortadela inesquecível: o que eu devorava diariamente, durante o recreio do meu primeiro ano escolar em Nova Castilho, lá pelos idos de 1972.

Naquele tempo não existia cantina na escola e nem carrinho de cachorro-quente pelas esquinas. Poucos alunos dispunham de lancheira, a maioria levava uma marmita de comida ou um pequeno farnel, um embornal com frutas da região (macaúba, pitanga, manga, jatobá, guabiroba).

Da fazenda onde eu morava até a escola havia uma distância de mais de quilômetro, não dava para ir almoçar em casa. Na hora do recreio a escola liberava os alunos para irem até em casa ou até os bares e empórios da pequena vila. O preferido era o pequeno armazém de secos e molhados do seu João Careca.

Sobre o pequeno balcão ele abria um pão bengala e enchia de mortadela. Mortadela pura, não havia maionese, catchup e estas outras besteiras a que estamos mal acostumados. Custava trinta centavos de cruzeiro e com os outros vinte da moeda de cinqüenta centavos que papai me dava todas as manhãs, eu comprava um guaraná Cotubaína. A moeda de cinqüenta centavos era comumente chamada de Quinhentão.

Ai que delícia! As febres de fast-food, as multinacionais de alimentos jamais foram capazes – ao menos para mim – de igualar o sabor do sanduíche de mortadela do João Careca, mesmo depois de décadas. De vez em quando ainda me assalta a estranha vontade de voltar ao local e pedir à Dona Hilda, esposa do seu João, que me prepare outro daqueles.

Por volta do terceiro ano mamãe achou que eu não devia mais comer sanduíches no recreio, mas eu não gostava da merenda escolar, umas sopas de gostos sofríveis, e passei a levar para a escola uma refeição completa num pequeno caldeirão com a tampa amarrada por um guardanapo de pano.

Minha salvação foi dona Delvina Pereira do Nascimento, cozinheira da escola que gentilmente mantinha minha marmita sobre a chapa do fogão à lenha, para que na hora do recreio a refeição ainda guardasse a quentura e o sabor.

Depois que me mudei para a cidade me tornei mais um alegre refém dos hábitos alimentares que os vendedores ambulantes proporcionavam à garotada.

Sei de gente que até hoje não se esquece da pipoca com molho de pimenta do seu João Lara. Por muitos anos a diversão da garotada nos finais de semana – e depois da missa do sábado à noite - era ir até a Praça da Matriz para experimentá-la. Não me esqueço que depois de receber o nosso dinheiro seu João enfiava a mão no bolso da calça para guardar a nota ou buscar algum troco e o braço dele praticamente desaparecia dentro do bolso. Acho que ele guardava o dinheiro no joelho.

Quem não se lembra com saudade do suco que seu João Barulho vendia nos finais de semana, especialmente nas tardes de domingo lá no Estádio Paulo Possetti? Era um suco de groselha, daqueles mais simples, artificiais, mas era uma delícia principalmente porque seu João era uma figura rara. O carrinho sobre rodas tinha uma manivela na tampa, através da qual se bombeava o suco para o copo. E enquanto ia tingindo de vermelho a língua da molecada ele aproveitava o tempo para gritar com os jogadores à beira do alambrado, ou xingar o juiz.

Os queijos do seu Maçu também devem ter ficado na memória de muita gente, tinha ele um rol de clientes fiéis que não ficavam uma semana sem renovar o estoque. Vivia pelas ruas carregando pelo braço uma pequena cesta da taquara. A todo mundo que avistava inquiria com voz retumbante e forte sotaque baiano:

- Vai queijo, menino?

Dona Angelina de Souza também deve estar no imaginário daqueles que experimentaram de seus quitutes e salgados. Todas as tardes ela enchia uma grande cesta de alumínio com muitas delícias e botava os filhos (Ana Lúcia e Zezé) a percorrer firmas e repartições públicas da cidade. À determinada hora da tarde todo mundo ficava de olho na esquina esperando para socorrer os reclamos da fome. Viúva desde muito cedo, dona Angelina lutou contra muitas dificuldades para criar e educar os filhos e como fomos vizinhos, sou testemunha do quanto ela trabalhou fabricando e vendendo salgados.

Minha adolescência salgadense também foi marcada pelos campeonatos de férias do Salgadense Esporte Clube, especialmente os de futebol de salão. A cidade toda se movimentava para freqüentar os jardins do clube que naquele tempo eram bastante arborizados, havia arquibancadas para os torcedores.

A garotada gostava de assistir aos jogos, mas gostava mais ainda das guloseimas vendidas no local. Os irmãos Leta e Nei Gordo carregavam um enorme tambor de lata recheado de beijus cuja tampa trazia uma espécie de roleta. A gente rodava a roleta na possibilidade de pagar um e levar dois e ficava a noite inteira tentando esvaziar aquele latão cheio de delícias.

Pagode era outro vendedor ambulante que a garotada adorava. De dia vendia picolés pelas ruas da cidade e se fazia anunciar soprando uma barulhenta gaitinha de boca. À noite vendia amendoim torrado nas dependências do Clube.

O creme do seu Jamil Padeiro era outra guloseima que atiçava a garotada, que quando avistava sua charrete verde circulando pelas ruas saía correndo atrás. Depois surgiu o sorvete do Gabriel, até hoje considerado um dos melhores da região. Tenho amigos que saem de Auriflama para tomar sorvete em Salgado.

Hoje em dia a cidade tem outros vendedores de delícias, existem novas guloseimas daquelas que não se pode dispensar. Alguns bares e lanchonete fazem churrasquinho nos finais de tarde e tem gente que não vai embora para casa sem antes experimentar um espetinho no ponto. Mas, me desculpem os amigos novatos, eu ainda morro de saudades das iguarias do meu tempo. É uma saudade que jamais vou recuperar.

Ouvi dizer que a idade interfere no paladar. Com o passar dos anos a pessoa perde papilas gustativas, responsáveis pela identificação dos sabores. Então justifico a minha saudade no fato de que jamais vou experimentar aqueles sabores novamente. Ficaram todos naqueles idos da minha infância e adolescência salgadenses.

Para finalizar uma historinha gastronômica.

No final dos anos 70 o Salgadense Esporte Clube promoveu uma gincana e dentre as provas havia uma para escolher o maior glutão da cidade. Mandaram encher uma mesa com comida e mais comida, e o vencedor seria aquele que ingerisse maior quantidade de alimentos.

As equipes buscaram os mais obesos e aparentemente mais esganados, Joaquim Gordo, João Gordo, Anísio Constantino, Joaquim Dourado, para enfrentar a parada. Afinal eram pratos e mais pratos, guloseimas e quitutes esperando serem devorados pelos esfomeados.

De repente, do nada apareceu um sujeito magrelo, esquelético, que morava para os lados do Cachorro Sentado, o distrito de Prudêncio e Morais. Durante a disputa os barrigudos foram parando, empanturrados com a comilança e o magrelo foi comendo pelas beiradas, prato em cima de prato, garfada sobre garfada.

Os gorduchos foram se entristecendo de tanto comer e o magrelo cada vez mais animado. Ninguém acreditava no que via, os bons-de-garfo da cidade foram humilhados por um caipira com cara de palito.

Meia hora depois da prova, as equipes se movimentavam para o cumprimento de outras tarefas e encontraram o campeão do garfo encostado ao balcão da Cantina do Mauro Cruzeiro. Perguntaram-lhe o estava fazendo, alguns pensando que ele aguardava um sal-de-fruta para ajudar na digestão. A resposta surpreendeu todos:

- Estou esperando um sanduíche que eu pedi. Eu moro no Cachorro Sentado e vou embora a pé. Até chegar lá dá uma fome!

Uns mais exaltados com a situação e com a cara-de-pau do sujeito queriam lhe dar uns petelecos.

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