segunda-feira, 26 de maio de 2008

Memória 42 (Salgadenses em BH)

1967 - Salgadenses em Belo Horizonte (MG)
Salvador Almeida, Arlindo Rodrigues de Almeida, Domingos de Almeida, Zé do Braz, Álvaro Rodrigues Filho, (não identificado), João Assato, Arsenio Colombo, e o motorista da Kombi, também não identificado (sabe-se que era um perueiro residente no Córrego do Lambari).
Se identificar alguém, mande um e-mail pro nosso embornal.
(foto: Álbum do blogueiro)

Mineirada Boa

Cada um dos povos que formam esse nosso imenso Brasil tem lá suas características pessoais, suas origens e costumes, seus acentos e linguagens próprias.

O português falado na região Norte é diferente daquele adotado pelos sulistas; a fala encontrada no Centro-Oeste é muito diferente daquela praticada no Nordeste, e assim por diante.

O interior paulista então, é deveras diferenciado, agregou um pouco do modo de falar, pensar e agir de outras regiões do país. O modo de agir de cada povo acaba transmitido para seus descendentes, os costumes são ensinados e difundidos.

A exemplo de muitos outros salgadenses, descendo de mineiros e conservo comigo muito dos caracteres deste povo, especialmente aqueles referentes à cultura, à culinária, à música, ao modo de se comportar e falar. Sou um puro interiorano, caipira mesmo. Andei por muitos cantos, conheci muita coisa diferente, mas nunca abri mão destes predicados.

Em contrapartida, cresci ouvindo histórias da caipirice dos mineiros. Tanto do lado paterno quanto materno, meus ascendentes que deixaram o estado de Minas Gerais no início do século 20 para se aventurar por estas bandas paulistas, eram gente muito simples, vinda de regiões pobres e até inóspitas. Jogaram mulheres, crianças e badulaques dentro de carros de boi e tocaram adiante para os rumos da terra prometida.

Se aqui na terra dos bandeirantes a vida já era difícil, dura, trabalhosa, muito mais dificultosa era a situação deixada para trás lá nas Alterosas.

No início dos anos 60 tio Azenclever Almeida (que já nos deixou) voltou à terra mineira para se casar com Dulce, sua prima. Na caravana de salgadenses, além dos irmãos (papai e mamãe recém-casados) alguns amigos próximos, como Arsênio Colombo e João Assato.

Depois de conhecer a região deixada para trás por vovô Álvaro, vendo aquela gente sofrida com jeito de abandonada, enfim, analisando aquele fim-de-mundo, seu Domingos filosofou com o irmão Ademázio:

- Foi Deus quem tirou meu pai daqui!

Naquele tempo havia gente morando nas cercanias de cidades, que nunca tinha deixado o quintal do sítio sequer para conhecer o vilarejo, jamais tinha visto uma rua calçada.

Tio Azenclever contava que numa das vezes em que retornou a Igaratinga para rever os parentes, isso há mais de vinte anos, conheceu um mineiro dos mais caipiras possíveis, daqueles que se assustavam com o progresso e com as modernidades.

Um dia lhe ofereceram sorvete e ele se agradou por demais da novidade, resolveu comprar o confeito para levar aos parentes que moravam no sítio. Comprou uma meia dúzia de picolés, enfiou numa pequena capanga e guardou tudo num dos bolsos da baldrana (para quem não sabe, baldrana é uma manta de couro que se coloca por sobre o pelego e os arreios).

Deu mais umas voltas pela cidade e, horas depois resolveu ir embora, mostrar a novidade aos parentes. Antes de retomar a montaria foi conferir o bolso da baldrana.

Para seu susto encontrou apenas os palitos e, raciocinando a seu modo, comentou com alguns presentes:

- Mas menino de Vila é danado, arteiro demais da conta sô! Chuparam o meu sorvete e ainda deixaram o palito dentro da capanguinha...

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Memória 41 (Salgadenses em Aparecida)

Anos 1960 - Salgadenses em Aparecida (SP)
Mauro Sérgio Castilho no colo do pai Wando Castilho, Avelino Santana, Ezequiel Santana e sua mulher Etelvina Santana, Jacira Santana, Lucia Helena Castilho, Arcidio Castilho, Wanda Castilho, Francisca Santana Morales e seu marido Benus Morales.
(foto: enviada por Miltinho Castilho)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A História do Noroeste Paulista - 2

Imagem Rara - São José do Rio Preto em 1909, quando possuía aproximadamente 100 imóveis e um pouco mais de 1.000 habitantes.

Por volta de 1800 a província de São Paulo contava com apenas 48 municípios, distribuídos ao longo da faixa litorânea e numa pequena parte do leste. O restante era praticamente constituído de terras devolutas.

As terras interioranas paulistas passaram a ser ocupadas a partir de 1850, primeiramente por criadores de gado vindos de Minas Gerais, Bahia e Mato Grosso. Depois, por mineiros que fugiram da Guerra do Paraguai (1864-1870), preferindo correr os riscos da vida no sertão a sujeitar-se ao alistamento militar.

Em 1866, quando regressava da Retirada da Laguna (episódio da Guerra do Paraguai), o militar e escritor Alfredo D´Escragnolle de Taunay, futuro Visconde de Taunay, utilizou-se da única rota existente no interior paulista, que hoje corresponde ao traçado da Araraquarense.

No ano seguinte registrou no livro Viagens de Outrora, sua passagem pelo pequeno povoado que depois passou a chamar-se São José do Rio Preto.

“Pousamos, por causa da grande tormenta, na única casa do arraial coberta de telha, pertencente ao Sr. João Bernardino de Seixas Ribeiro. A povoação consta de meia dúzia de palhoças abandonadas, na ocasião do recrutamento, por todos os habitantes que, com exceção do subdelegado, que era o próprio recrutador, haviam fugido para as matas e pontos em que se tornasse possível a exigência do serviço de armas. Há uma igrejinha em construção, e cremos que por muitos anos fique neste estado, quando não se arruíne totalmente”.

A partir de 1900, com aberturas de novas e imensas fazendas de café chegaram os imigrantes estrangeiros. Assim se deu a ocupação do interior paulista.

A vasta região localizada no sentido do oeste paulista era totalmente desabitada até 1800. Era um latifúndio que compreendia quase metade do território do Estado, sem qualquer traço de civilização. Em 1850 o interior paulista servia apenas de passagem para o gado criado no Mato Grosso, com destino a Minas Gerais e depois às populações litorâneas e principalmente aos grandes centros urbanos do sudeste do país. Não havia ligação entre São Paulo e Cuiabá.

Em 1892 o Coronel Carlos Ferreira de Castro, o Capitão José Maria e o Padre Ferraz, vigário da Vila de Santana do Paranaíba, no Mato Grosso, fizeram o trajeto do Rio São José dos Dourados (em São Paulo) e chegaram a Viradouro, ultimo reduto povoado ao norte de São José do Rio Preto.

Lá organizaram um grupo de foiceiros e machadeiros para abrir uma trilha pelo mato, que chegou à barranca do Rio Paraná. Por esta trilha passaram as primeiras boiadas vindas do Mato Grosso para São Paulo e Minas Gerais.

Do Porto do Tabuado (Rio Paraná) o trajeto seguia paralelamente orientando-se pelo curso natural do Rio José dos Dourados até São José do Rio Preto. Para chegar a Barretos passava por sobre o Rio Turvo, para alcançar Uberaba e Uberlândia, em Minas Gerais, cruzava o Rio Grande. Às margens da Estrada surgiram fazendas de criação de gado, o que fez aumentar o povoamento da região.

A Estrada Boiadeira era a ligação da região matogrossense criadora de gado aos importantes entrepostos, com intensas atividades na pecuária, abate e comercialização de carne, cuja produção demandava ao consumo das populações das principais cidades do sudeste brasileiro.

O escritor Euclides da Cunha (1866-1909), autor da grande obra Os Sertões, visitou a região e fez um importante e profético registro:

“A Estrada Boiadeira é a mais importante do Brasil. Tem um caráter continental tão frisante que em pouco tempo duplicará a vitalidade nacional”.

Com o advento da cafeicultura, as boiadeiras viriam ainda servir para que a produção cafeeira chegasse às cidades chamadas pontas de trilhos. Outra trilha, no lado mineiro, ligava Santana do Paranaíba (Mato Grosso) a Uberaba (Minas Gerais), sobrepondo o rio Paranaíba, através do Porto Alencastro.

Em 1894 São José do Rio Preto possuía menos de 100 imóveis e cerca de 1.000 habitantes. Seu território compreendia imensa área de terras que confrontava: a Oeste – Rio Paraná; ao Sul – Rio Tietê; a Leste – Rio Turvo; e ao Norte – Rio Grande.

Entre 1900 e 1950 o território paulista passou a ser efetivamente ocupado, contribuindo para isto não só as riquezas que seriam obtidas com o café, mas principalmente pela conclamação na ocupação do interior do país, denominada Marcha para Oeste, promovida por Getúlio Vargas nas décadas de 30 a 50.

Primeira Estação Ferroviária de Araçatuba, construída por volta de 1908. A cidade foi construída no entorno da Estação.

Em 1911, o Governo do Estado começou demarcar as terras devolutas no interior, aliviando o processo de ocupação territorial, facilitando a compra e venda, a regularização de posses, fixando critérios para os negócios e as relações sobre a terra.

Este ato contribuiu para evitar as especulações e grilagens, para estimular as relações de trabalho, com o surgimento das figuras do proprietário, do arrendatário, do meeiro, do empreiteiro e do colonato. Eliminaram-se assim os conflitos de posseiros que expulsavam os índios e a indústria da posse.

As Comissões de Demarcação nomeadas pelo governo paulista adentraram o interior demarcando ou discriminando terras do Estado e terras particulares, estipulando prazo para que os ocupantes comprovassem a posse por pelo menos 5 anos, a existência de áreas de cultivo e o uso do local para moradia familiar.

Os possuidores de imóveis rurais que demonstraram o preenchimento destes requisitos se tornaram proprietários definitivos das terras, com a homologação do Governo do Estado.

As comissões que mapearam a região existente entre Bauru e São José do Rio Preto eram chefiadas pelo Engenheiro Gregório Mascarenhas. A demarcação conferiu valor de mercado às terras, mas também obrigou os proprietários ao recolhimento de impostos.

A região da Alta Araraquarense, nos territórios onde surgiriam os municípios de Votuporanga, Fernandópolis, Jales e Santa Fé do Sul, tinha muitos problemas de grilagens, terras estas encravadas entre as margens dos rios Grande, ao norte, São José dos Dourados, ao sul, e Paraná, a oeste.

Demarcadas constituíram doze fazendas e algumas glebas: Marimbondo, Ranchão, Iagora, São Pedro, Voador, Prata, Marinheiro, Pádua Diniz, Água Vermelha, Santa Rita e Ponte Pensa.

A Estrada Boiadeira cortava estas fazendas e ficou sendo a via de acesso para os sertanejos vencerem as inóspitas florestas, plantarem as cidades e povoarem a região, facilitando as relações comerciais entre Mato Grosso, São Paulo e Minas Gerais.

Na região mais próxima da margem do Rio Tietê surgiram as glebas nomeadas de Fazenda Talhados, Fazenda Carrilho e Fazenda Limoeiro

Habitação típica dos pioneiros da região Noroeste Paulista, casas de pau-a-pique abertas em meio ao extenso matagal.

Nestas imensas fazendas surgiram povoados, vilas, novas cidades e novos municípios, impulsionados pela expansão da cafeicultura, atividade econômica que, atrelada à imigração italiana, levou à expansão das estradas ferroviárias para transporte da produção.

Estrada Boiadeira do Taboado - Imagem atual, colhida por Evandro Ferreira, descendente de salgadenses residentes em Nova Castilho, turismólogo e encarregado do setor de Museus e Patrimônios Históricos de Votuporanga (SP), cujo importante levantamento sobre a Estrada do Taboado pode ser conferido AQUI, e que gentilmente contribuiu para as nossas pesquisas sobre o tema.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Memória 40 (Márcio Teixeira e João de Mello)

1975 - Márcio Teixeira da Rocha e João de Mello, dois dos mais renomados músicos salgadenses de todos os tempos. Márcio também foi destaque como professor de violão e treinador de futebol das categorias de base.
(foto: enviada por Ivone Fantini)

Casados x Descasados

Com quatorze anos de idade eu trabalhava no Cartório de Registro Civil de General Salgado, então comandado pelo Escrivão Hésio Rodrigues de Carvalho.

Seu Hésio era uma figura ímpar, um senhor com mais de 60 anos muito elegante e alinhado, cabelos grisalhos bem penteados, sapatos engraxados, guarda-chuvas no braço. Quando adentrava os corredores forenses o pessoal nem precisava vê-lo para saber de sua chegada, pois sua passagem ia sendo revelada pelo perfume que dele recendia. Por isso era carinhosamente chamado pelos colegas de Cheiroso.

O cartório funcionava aos sábados por causa dos casamentos civis que eram realizados. Como eu havia aprendido todo o funcionamento do cartório, seu Hésio (em conluio com o juiz de paz Melentino Cardoso) decidiu me ensinar a celebrar os casamentos. Escreveu o palavreado numa folha e fui eu ajudar seu Melentino.

Da primeira vez as pernas tremiam, a voz ameaçava falhar. Semanas depois eu nem precisava do papelote, tinha decorado tudo.

Por quase cinco anos ajudei a sacramentar o enlace de muitos salgadenses. Seu Melentino fazia algumas perguntas básicas sobre livre e espontânea vontade e em seguida declarava que a partir daquele instante o casal era marido e mulher. Aí entrava eu sapecando o texto decorado com o acréscimo dos dados sobre os nubentes, filiação, naturalidade, essas coisas.

A gente adorava quando o casal pedia para fazermos o casamento fora do cartório, ou seja, no local da festa, pois acabávamos pegando carona no evento. Na zona rural era mais gostoso, casamento de fazenda não acontecia sem aquela churrascada.

Ao final de cada casamento, depois que os noivos e os padrinhos assinavam o termo, seu Melentino entregava a certidão de casamento e repetia os votos de felicidades, no final acrescentava uns conselhos:

- Juízo, meus filhos!

Um casal de sitiantes de Nova Palmira, convivendo há mais de quarenta anos resolveu regularizar a situação dos filhos com o casamento civil. Os dois tinham ultrapassado os 60 e, ao final da cerimônia o juiz de paz nem se deu conta. Repetiu o mesmo palavreado, recomendando juízo aos contraentes.

Seu Melentino conta que há muitos anos, no tempo em que o sujeito era obrigado a casar para salvar a honra da moça desvirginada, um pai prestou queixa na Polícia dizendo que a filha havia sido desonrada e o autor do fato se negava ao casamento.

Forçado pelo Delegado de Polícia o cidadão não teve outra saída, aceitou o matrimônio. Para impedir alguma surpresa o delegado determinou a um Sargento que acompanhasse a cerimônia. Na hora do casamento o juiz de paz perguntou ao noivo se ele aceitava a noiva, e se o fazia espontaneamente. O rapaz coçou a cabeça, olhou para o lado e se assustou com a cara séria do miliciano. O jeito foi concordar:

- Já que é assim que o Sargento quer, eu aceito!

Anos depois, como advogado, me vi atuando do outro lado da situação. Ao invés de sacramentar a união dos casais passei a formalizar suas separações.

Talvez por conta do fato de ter vivido aquela experiência, convivido por muito tempo com a felicidade que os casais demonstram na hora do casamento, não sei atender a um casal que pretende se separar sem fazer uma – ainda que pequena – tentativa de reconciliá-los. Mesmo que o sucesso da empreitada, no caso, possa redundar em deixar de fazer o serviço e conseqüentemente não receber honorários.

Em mais de vinte anos de advocacia tive a oportunidade de divorciar até mesmo casais que eu, ainda garoto de tudo, havia ajudado a casar ao lado de seu Melentino.

Depois que a Constituição Federal passou a considerar a união estável como entidade familiar, voltei a unir casais através de ações que visam o reconhecimento da convivência e a preservação de direitos. Atualmente está em moda o contrato de namoro, pessoas divorciadas e proprietárias de bens, que começam a namorar outras na mesma situação buscam precaução através desses contratos, a fim de que o namoro não seja confundido com a união estável. Para isso solicitam a lavratura de um pacto dizendo que a união é um simples namoro e que, ao final dela, ninguém ficará devendo nada para ninguém.

Eu acredito na união das pessoas independentemente das formalidades. Depende do que elas esperam da união, pois, a forma com que foi sacramentada não é capaz de tornar a convivência mais ou menos sólida.

São outros os fatores responsáveis pela segurança ou pela fragilidade do relacionamento, dentre eles o respeito, a consideração, a amizade, o companheirismo e, logicamente, o amor. Enfim, acredito que o casamento (ou a convivência marital) é um estado de espírito.

Mas quando o casal resolve se separar a grande maioria dá mostras claras de que perdeu tudo isso, foi-se o respeito, a consideração, e os dois brigam até por causa de panela.

Conheço um salgadense casado há muitos anos com a mesma mulher, filhos adultos, que diz ter atravessado algumas crises de relacionamento com a esposa, chegando a falar em separação.

Apesar dos desentendimentos o casal se mostrava pacífico, mantendo, pelo menos, a amizade e a consideração. O marido disse à mulher que caso a decisão fosse pela separação ele sairia de casa, ela ficaria com os filhos, os móveis, a casa, ele pagaria a pensão e visitaria os filhos na medida do possível. Fez uma única restrição:

- Eu só quero o nosso colchão! Você pode ficar com o todo o resto. Eu só quero colocar o colchão no meio da rua e botar fogo!

A mulher não entendeu nada. Para quê o marido pretendia levar de casa apenas um velho colchão. Insistiu até que ele se explicou:

- A gente vai se separar, você vai tocar sua vida e eu a minha. Daqui a algum tempo você se casa de novo, eu não me oponho, tudo fica bem! Eu só não quero saber de outro sujeito fazendo festa em cima do meu colchão!

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Memória 39 (João Berto)


João Norberto e Benta Faria Marques - filho do pioneiro Norberto Luiz Marques. O casal teve cinco filhos: Alcino (casou-se com Elvani Franco), Arcilio (Odete Rosa), José João (Maria Neves), Dalira (Elson Mian) e Elena (João Cândido Pereira).
(foto: Álbum da Família Marques)

Carta Aberta a Um Amigo Salgadense

Chapadão do Sul (MS), maio de 2002.

Estimado amigo,

Tenho revolvido com afinco um velho baú de guardados a fim de contar neste canto aqui na grande rede, um pouco de tudo o que vi, vivi e conheci da nossa querida General Salgado.

Lembrei-me de algumas coisas que se passaram na minha infância em Nova Castilho, dos amigos que fiz quando me mudei para a sede do município, do nosso grupo de adolescentes, das peladas pelos campinhos esburacados, escolas e professores, serenatas e noites de cantoria.

Em todas as vezes que remexia o interior do baú de recordações para buscar um fato, uma história, um personagem, por entre os guardados eu te via, sentia tua presença e tua importância em minha vida, sabendo que um dia eu teria que falar de ti. Em cada uma destas oportunidades em que vislumbrei tua presença ali em meio às minhas melhores lembranças, me certifiquei – com vívida satisfação - que ainda guardo por ti o mesmo respeito, o mesmo carinho e uma admiração perene.

Sei que tudo o que devo, quero e tenho que te dizer, poderia ter sido dito há muito tempo atrás. Mas o tempo - Ah! o tempo - vive nos espremendo, nos compelindo, adiando, postergando encontros, visitas, abraços, conversas, confissões, ao mesmo tempo em que nos vai mitigando o entusiasmo daqueles tempos em que a juventude a tudo comandava, incentivava, incitava.

Hoje eu te compreendo, velho amigo, e sei que você nos contou uma história fantasiosa, fazendo com que acreditássemos que ia nos fazer jogadores de futebol. Mas os teus planos, o teu intento e a tua missão estavam muito distantes disso. Você não queria que jogássemos futebol, apenas nos fez acreditar nisso.

E nós acreditamos em ti com a fé da adolescência, com a certeza de quem tem toda uma vida pela frente, a confiança de quem não teme os erros, as vicissitudes, as incertezas, e até mesmo, as inconseqüências.

Pulávamos das camas às 5 da matina para ir treinar lá no velho estádio Paulo Possetti. Alguns, como eu, depois de correr duas horas inteiras – parte delas dedicadas à educação física – mesmo nas manhãs de inverno, às 8 em ponto pegavam no batente. Havia dias em que retornávamos às 5 da tarde para repetir toda a faina.

Tanto acreditamos em ti que entrávamos em campo e lutávamos com denodo para defender o grupo e nome da cidade. E não foram poucas as vitórias, não eram insignificantes os adversários e muitas foram as vezes em que voltamos para casa mostrando nossa felicidade pelas ruas da cidade, gritando a plenos pulmões o placar do jogo para aqueles que nos aguardavam. Na nossa crença juvenil não fomos capazes de perceber que os teus planos a nosso respeito eram outros.

Há uma cena entre nós que precisa ser revivida. Voltávamos de um jogo nas cercanias, o velho Tartarugão balançava pela rodovia e alguns amigos começaram a tocar a campainha do ônibus, puxando o fio que os passageiros normalmente usam para pedir parada. Você, como sempre, deu as primeiras broncas sem identificar o autor da travessura.

Não sei por que motivo, já que eu nunca fui de quebrar a disciplina do grupo, resolvi entrar na brincadeira e puxar o cordão, aproveitando um momento de tua distração. Você insistiu na repreensão e me perguntou sério: “Quem foi?”. Naquele instante, sem resistir ao teu olhar inquisitivo eu me acusei. Não fui capaz de ocultar de ti a traquinice e esperei o merecido castigo.

Mas por detrás do teu olhar de repreensão você deixou aparecer um sorriso denunciando nossa proximidade, nossa cumplicidade. O teu sorriso foi capaz de premiar a minha sinceridade e ao mesmo tempo punir a minha impertinência.

Sinto dizer, meu amigo, que os teus planos futebolísticos redundaram em fracasso. Ninguém daquele time alcançou o estrelato com a bola nos pés, ninguém envergou outra camisa senão aquela azul e branca do nosso Grêmio Desportivo Salgadense. E nós, num arroubo de egoísmo, acabamos creditando a você o nosso insucesso. Num repente passamos a crer que teus métodos não estavam aptos a conduzir nossos planos de profissionalização e estrelato.

E por conta da nossa crença estúpida e insensata, própria dos açodados, dos despreparados, dos que acreditam que tudo sabem, que tudo podem, acabamos te magoando. A minha larga parcela de responsabilidade, sabe você, assumi na tua presença, do mesmo modo como me denunciei no dia em que toquei aquela campainha. Era o mínimo que eu poderia fazer naquele tempo, apesar de não ter bastado para me eximir, para expiar minha equivocada e culposa posição.

Hoje venho te pedir perdão. Desculpe-me o atraso de “apenas” vinte anos, mas ainda que fossem quarenta eu teria que fazê-lo. Nesses vinte anos nos encontramos algumas vezes, conversamos um pouco e posso acreditar que o tempo – que tudo supera e cicatriza – tenha sedimentado o turbilhão de sentimentos que te atingiu. Muitas foram as vezes em que busquei com os velhos amigos notícias tuas, e creias, saber-te bem sempre me serviu de acalento ao coração.

Como fomos inocentes meu amigo! Como nos deixamos iludir! Confiamos cegamente que você nos queria craques de bola, e não fomos capazes de perceber que o que você realmente pretendia era nos transformar em homens!

E você não se poupou de oportunidades, não economizou entusiasmo, seja nas vezes em que deixou o convívio dos teus para nos acompanhar; nas vezes em que tirou dinheiro do bolso para socorrer aqueles mais necessitados; nas vezes em que sacrificou o horário do teu trabalho diário em nosso benefício; nas vezes em que, para reunir o grupo, fortalecer amizades e companheirismo, varamos noites em longas conversas de esclarecimento e orientação, você sempre nos oferecendo teu ombro amigo, tua experiência de vida, teus ouvidos plenos de compreensão. Com muitos, você ainda dividia o aconchego da tua casa, a comida da tua mesa, a compreensão de tua família, a alegria do teu violão.

Em todas essas oportunidades você jamais demonstrou cansaço, incompreensão, jamais deixou de dar socorro às nossas inquietações. Em contrapartida nos cobrava apenas comportamento, atitude, disciplina, personalidade, tentando harmonizar nossa convivência em grupo e ao mesmo tempo fortalecer nossas vidas em família.

Nossos pais sempre foram e sempre serão para nós referências básicas, jamais esqueceremos, jamais desprezaremos tudo o que deles recebemos, tudo o que com eles aprendemos. Mas houve vezes em que eles não estavam por perto, houve vezes em que eles eram os motivos das nossas inquietações, houve vezes em que não tivemos coragem, oportunidade ou liberdade suficiente para nos abrirmos com eles. Nessas horas, amigo, você estava conosco e nunca negou uma palavra amiga, um conselho, um conforto, uma orientação. Nunca deixou de nos ouvir e de dar sua contribuição para o nosso crescimento, para o nosso amadurecimento.

Cá comigo creio que carregas íntima convicção do quanto foi grande e importante o resultado do teu intento. Ouso acreditar piamente que tens consciência de que tua missão se preencheu de êxito, de sucesso e de concretização. Ainda assim vou te dar alguns exemplos:

- aquele goleiro metido a elegante, que fazia questão de comprar – a duras penas – seu próprio uniforme, mas que negaceava quando era necessário contribuir para o time, mais por dificuldades financeiras do que por sovinice, hoje é um homem assentado na vida. Superou obstáculos, constituiu família, alcançou o respeito de seus pares;

- aquele centroavante cabeçudo que às vezes treinava com os pés descalços porque não tinha dinheiro para comprar chuteiras, hoje é próspero empresário, cresceu na vida honestamente, com trabalho árduo e honrado; é motivo de orgulho para todos nós que conhecemos das dificuldades que enfrentou, que partilhamos com ele alegrias, tristezas e esperanças;

- um outro atacante polivalente que de vez em quando vestia a camisa de titular, aquele, que sempre dava show jogando pelos aspirantes, hoje é homem feito, tem família, filhos, e quando deixa o Estado onde vive para vir visitar os amigos e familiares salgadenses, e por aqui desfila ao volante de um carrão reluzente, nós que sabemos o quanto foi dura a sua caminhada sentimos que a vida sabe premiar os que lutam, os que buscam trilhar o caminho dos justos.

Eu poderia falar de todos os demais companheiros e em todos eles há um motivo de orgulho, uma vitória a ser anunciada, um caminho trilhado com dedicação e premiado de êxito. Alguns talvez não tenham alcançado plena independência financeira, mas te garanto que todos se tornaram homens de bem.

Tenha certeza, meu amigo, que em todos eles influenciou positivamente a tua palavra sincera e cordata, teu apoio, tua orientação mesmo que em forma de censura, e ainda que você nos tenha vendido a ilusão de que estavas mais preocupado com o nosso futebol. Não há um de nós que não te guarde carinho e consideração, que não se sinta agradecido. Ninguém jamais esquecerá o que fizestes.

Por tudo isso é preciso te dizer muito obrigado, amigo Márcio Teixeira da Rocha, e o faço aqui com redobrada saudade e renovada esperança de que tenhamos ainda um dia oportunidade de reviver e revolver aqueles dias de aprendizado, de amizade e crescimento, em que você nos doou grande parte do seu coração imenso, justo, caloroso e fraterno.

Tenha certeza que você colherá os merecidos frutos do que plantou, se é que isso ainda não aconteceu. Eu ficaria muito feliz se soubesse que as gerações que nos sucederam tiveram (ou terão) as mesmas oportunidades que tivemos, de pelo menos, conviver e aprender sobre a vida com uma pessoa como você.

Jamais deixarás de ocupar um lugar especial no meu baú de guardados, esse baú que trago seguro e preservado aqui dentro do peito.

Dê lembranças minhas à Sueli e às crianças (que já não devem ser tão crianças assim!).

Que Deus te abençoe.

Um forte abraço do eternamente agradecido amigo Carlos José.