terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Pedacinhos Coloridos de Saudade

“Confete, pedacinho colorido de saudade, ai, ai, ai, ai, ao te ver na fantasia que usei, confete, confesso que chorei; chorei porque lembrei do carnaval que passou, daquela Colombina que comigo brincou, ai, ai, confete, confesso o amor que se acabou”.[1]

Tenho uma incontida saudade dos bailes de carnaval do velho Salgadense Esporte Clube, não só porque ficaram indelevelmente gravados nas várias páginas de lembranças da minha adolescência, mas também porque acredito que os amigos salgadenses que não viveram aquela época jamais terão oportunidade de conhecer e curtir verdadeiros bailes de carnaval como nós o fizemos. Desculpem a imodéstia, é por puro saudosismo.

Hoje em dia o festejo banalizou-se, todo fim de semana tem uma festa parecida com aquela do mês de fevereiro, exceção feita, no caso de nossa cidade, das reuniões dos blocos. No nosso tempo o carnaval era uma festa única, diversificada, o que acontecia nas cinco noites de bailes nos salões do Clube não acontecia no restante do ano, por isso todo mundo procurava aproveitar ao máximo.

O fenecimento dos bailes também fez desaparecer as marchinhas de carnaval, um ritmo que surgiu no Brasil no carnaval carioca de 1920 e que se caracterizou, ao longo dos anos, como a marca registrada dos carnavais brasileiros. Infelizmente, o investimento pesado que as gravadoras multinacionais fizeram na chatíssima música baiana acabou fazendo com que as marchinhas fossem deixadas de lado durante o carnaval.

A verdade é que elas faziam do festejo um evento diferenciado, servindo à crítica, à sátira, à galhofa, consonante ao espírito da alegria reinante. O samba é sentimental, romântico, enquanto a marchinha é viva, crepitante, buliçosa e até mesmo canalha. O samba é poético ou filosófico, a marcha é caricatural, gargalhante e maliciosa. Tanto que o andamento das músicas ou das letras satíricas e atrevidas permitia certa narrativa às aventuras dos foliões.

A fim de alimentar a saudade daqueles que viveram os bons carnavais salgadenses e para tentar mostrar aos demais um pouquinho do que vivemos naquele tempo, especialmente nos nossos primeiros bailes quando ainda nos arrebatavam os anseios adolescentes, vou contar como é que os foliões faziam uso das marchinhas para se divertir e paquerar as moças bonitas do salão.

O baile começava, a noite prometia, e a turma saía de casa cantarolando: “É hoje que eu vou pra farra, ninguém me agarra, eu vou me espalhar, maestro manda aquela brasa, que eu saí de casa pra ver o bumbo furar; mas se o bumbo furar deixa tudo pra mim, eu vou de garrafa, batendo assim...”;[2] e entrava no clube na maior animação, pulando e cantando junto com a banda: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar, eu passo a mão no saca, saca, saca-rolha, e bebo até me afogar; se a polícia por isso me prender, mas na última hora me soltar, eu passo a mão no saca, saca, saca-rolha, ninguém me agarra, ninguém me agarra”.[3]

Os rapazes davam umas voltas pelo salão, analisando o ambiente e estudando a situação: “Sa-sassaricando, todo mundo leva a vida no arame, sa-sassaricando, a viúva, o brotinho e a madame, o velho na porta da Colombo é um assombro sassaricando, quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só, porque sem sassaricar, essa vida é um nó...”.[4]

Enquanto o local ia se enchendo de moças bonitas era essencial ir tomando umas cervejas para melhorar a animação: “Caiu na rede é peixe, lê-lê-á, eu não posso bobear, a maré tá cheia, tá-tá-tá-tá-tá, cheia de sereia e o anzol querendo se enfiar”.[5]

E logo depois – mais animados ainda - voltar pulando para o salão: “Se a canoa não virar, olê-olê-olá, eu chego lá; rema, rema, rema, remador, quero ver depressa o meu amor, se eu chegar depois do sol raiar, ela bota outro em meu lugar”.[6]

Assim que localizada a pretendida acontecia a aproximação, aguardando a música certa para sair acompanhando os passos da moça: “Menina você é um doce de coco, tá me deixando louco, tá me deixando louco; brotinho legal, teu rebolado é de babar, o meu carnaval com você é um chuá, chuá”.[7]

É importante lembrar que durante o desenrolar desta musica havia um hábito muito gostoso, os homens se colocavam atrás das moças e segurando-as pela cintura levantavam-nas até a altura da cabeça no exato instante em que se cantava o “chuá-chuá”. Encontrar alguma que topasse a brincadeira era meio caminho andado.

Depois disso o ideal era ficar dançando ao lado da garota, com o braço sobre seus ombros: “Quem sabe, sabe, conhece bem, como é gostoso gostar de alguém; ai morena, deixe eu gostar de você, boêmio sabe beber, boêmio também tem querer”;[8] e esperar a música mais bonita da noite: Máscara Negra, que começava num ritmo mais lento e disparava na frase final:

“Quanto riso, oh! quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão; foi bom te ver outra vez tá fazendo hoje um ano, foi no carnaval que passou, eu sou aquele Pierrot que te abraçou e te beijou meu amor, a mesma máscara negra que esconde o teu rosto, eu quero matar a saudade; vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval, vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”.[9]

Não preciso nem dizer que a frase final tinha que ser coroada com o beijo.

Depois disso, nova corrida até o boteco a fim de tomar mais umas e comemorar: “me dá um gelinho aí, eu tô a cem por hora, se não parar o calor eu jogo a roupa fora, é agora, é agora, que eu jogo a roupa fora...”.[10]

Se a coisa engrenasse ficava tudo numa boa, o par seguia junto pelo resto da noite. Se ficasse só naquele beijo e nada mais, ninguém tinha do que reclamar: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim, oh! meu bem não faz assim comigo não, você tem, você tem que me dar seu coração, essa história de gostar de alguém já é mania que as pessoas têm, se me ajudasse Nosso Senhor eu não pensaria mais no amor”.[11]

No meio da multidão podia acontecer de o casal se perder, ele ia para o boteco de novo, ela seguia as amigas até os jardins, mas logo, logo se reencontravam: “Bandeira branca amor, não posso mais, pela saudade que me invade eu peço paz, saudade mal de amor, de amor, saudade dor que dói demais, vem meu amor, bandeira branca eu peço paz”.[12]

E a noite seguindo adiante. O baile se aproximava do final e ninguém queria arredar pé do salão: “se você pensa que cachaça é água, cachaça não é água não, cachaça vem do alambique e água vem do ribeirão, pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, pode me faltar manteiga e tudo não faz falta não, pode me faltar o amor, isso até acho graça, só não quero que me falte a danada da cachaça”.[13]

Todo mundo pulando sem parar e o calor obrigando a buscar um refresco debaixo das frondosas árvores dos jardins do clube: “Allah-la-ô, ôôô, ôôô, mas que calor ôôô, ôôô, atravessamos o deserto do Saara, o sol estava quente e queimou a nossa cara; viemos do Egito e muitas vezes nós tivemos que rezar, Allah, Allah, Allah, meu bom Allah, mande água pra Ioiô, mande água pra Iaiá, Allah, meu bom Allah”.[14]

Os blocos fantasiados desfilavam animação e luxo pelo salão, durante a noite subiam ao palco para mostrar as fantasias: “Eu sou o pirata da perna de pau, do olho de vidro, da cara de mau, minha galera dos verdes mares não teme o tufão, minha galera só tem garotas na guarnição, por isso se outro pirata, tenta a abordagem eu pego o facão e grito do alto da popa, Opa! homem não!”.[15]

No fim da noite a turma do funil já estava de tanque cheio, mas sem perder o rebolado: “Hei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí; não vai dar, não vai dar não, você vai ver a grande confusão, eu vou beber, beber até cair, me dá, me dá, me dá, oi, me dá um dinheiro aí”.[16]

Uns mais encharcados até rolavam pelo chão: “Foi numa casca de banana que pisei, pisei, escorreguei, quase caí, mas a turma lá de trás gritou, chiii, tem nêgo bêbo aí, tem nêgo bêbo aí”.[17]

Nem as sogras escapavam da brincadeira: “Trocaram o coração da minha sogra, botaram o coração do jacaré, sabe o que aconteceu, a velha se mandou e o jacaré morreu; é, é, é, é, coitado do jacaré, é, é, é, é, coitado do jacaré”.[18]

E tudo seguia na mais perfeita alegria com o clube decorado e enfeitado, circundado de serpentina e colorido de confete. Os foliões sequer pensando em outra coisa que não fosse a festa, a diversão.

Ao final da noite o piston anunciava o encerramento do festejo sob o protesto de todos: “pa-nam, pa-nam, pa-nam, pa-nam, pananananananam...”. Os foliões iam embora descansar e se preparar para a noite seguinte. Era proibido perder uma noite de baile, afinal de contas, tudo tornaria a acontecer de novo apenas dali a um ano.

Dentre vários outros fatores, os blocos salgadenses também foram responsáveis – na minha modesta opinião – pelo esmorecimento dos bailes, segurando os foliões confinados e desmotivando-os a freqüentarem os salões do clube.

É uma pena, pois os bailes permitiam o encontro, o congraçamento de todos, independentemente da facção carnavalesca.

Tenho certeza que muita gente gosta do carnaval como ele é hoje e nós, saudosistas, temos que recordar e sentir muita saudade daqueles tempos em que passávamos cinco noites de verdadeira festa e animação, salpicados de pedacinhos coloridos, pedacinhos que hoje se transformaram, mais do que nunca, numa gostosa saudade.

“Recordar é viver, eu ontem sonhei com você; eu sonhei meu grande amor, que você foi embora, logo depois voltou...”.[19]

[1] CONFETE (David Nasser/Jota Jr.)
[2] DIG DIM DIM (Vicente Longo/Waldemar Camargo)
[3] SACA-ROLHA (Zé da Zilda/Zilda do Zé/Waldir Machado)
[4] SASSARICANDO (Luiz Antonio/Zé Mário/O. Magalhães)
[5] CAIU NA REDE (Rubens Campos)
[6] MARCHA DO REMADOR (Antonio Almeida)
[7] DOCE DE CÔCO (V. Longo/Waldemar Camargo)
[8] QUEM SABE, SABE (J. Sandoval/Carvalhinho)
[9] MÁSCARA NEGRA (Zé Kéti)
[10] GELINHO (Manoel Ferreira/Ruth Amaral)
[11] TA-HI (Joubert de Carvalho)
[12] BANDEIRA BRANCA (Max Nunes/Laércio Alves)
[13] CACHAÇA (Mirabeau/L. de Castro/H. Lobato)
[14] ALÁ-LA-Ô (Nássara/Haroldo Lobo)
[15] PIRATA DA PERNA-DE-PAU (Braguinha)
[16] ME DÁ UM DINHEIRO AÍ (Homero, Ivan e Glauco Ferreira)
[17] TEM NÊGO BEBO AÍ (Mirabeau/Ayrton Amorim)
[18] CORAÇÃO DE JACARÉ (J. Nunes/Dom Jorge)
[19] RECORDAR (Aldacir Louro/A. Macedo/A. Martins)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Memória 26 - Carnaval

Tô-Que-Tô - 1987

1987 - David Cristoni, Chiquinho Cervantes, Gisele Cristoni e Regina Cervantes

1997 - Piu, Batata, Marli Crivelari, Cássia Veschi, Mané Bernabé, Regina Cervantes e Vânia Mendonça.

Os desfiles do Tô-Que-Tô são sempre alegres e coloridos


Nos primeiros anos o Tô-Que-Tô se reunia na casa do Sr. Agostinho Iannela. Depois adquiriu terreno e construiu sede própria. Hoje, a estrutura da sede é um dos destaques do bloco

Sede própria do bloco Tô-Que-Tô
(fotos: Álbum de Mané Bernabé)

Maluko x Tô-Que-Tô

O tempo mostrou que o argumento que sustentei para defender o ingresso de outros amigos no Bloco Maluko para o carnaval de 1983, e que não foi aceito pela maioria dos companheiros, teria sido a melhor decisão. A maioria vencedora se formou sob a tese de que a adesão dos demais tornaria o bloco muito grande e a intenção era manter um pequeno grupo.

Mas esta concepção foi para o espaço quando o Tô-Que-Tô arregimentou um grande número de pessoas e tivemos que convidar mais gente para o nosso lado, tentando equilibrar a disputa. Quer dizer, de cara provocamos o indesejado inchaço no bloco - e pior ainda, em minha opinião - um racha no enorme grupo de amigos que formávamos durante o resto do ano.

Merece registro o nome de alguns dos amigos que formaram as bases do Tô-Que-Tô: Leandro dos Santos (Kaluzinho), Tia Neide, os irmãos Filó, Vera e Zé Roberto Iannela, Mané e Roberta Bernabé, Chiquinho, Gustão e Regina Cervantes, Vânia Mendonça, Uta Garcia, Marli e Batata Bernabé, Potô Chaves, Pedrinho Arruda, Dinoel Marques, Birolinho (Edson Alves), Nêra (Laurico de Almeida), Cecília Pretti, Guilhermina Iannela, Pililica Cruzeiro, Ademir Fantini e muitos outros que a memória não alcança.

O cordão se achava em formação e meses antes do carnaval, Leandro, Filó e alguns outros fundadores participaram de uma excursão salgadense ao Rio de Janeiro, onde assistiram na Casa de Espetáculos Canecão ao Show da cantora Simone. Era o lançamento do disco Corpo e Alma e fazia estrondoso sucesso uma música chamada Tô-Que-Tô, de autoria dos compositores Kleiton e Kledir Ramil.

Embasbacados com o show e o talento da cantora baiana, os salgadenses voltaram à terrinha com tudo aquilo borbulhando na cabeça, especialmente o refrão da música: “eu tô-que-tô, eu tô-que-tô”. Assim surgiu o nome do bloco que logo no primeiro ano venceu a disputa com o Maluko e sagrou-se campeão do carnaval salgadense.

Não me lembro de quantas vezes cada bloco venceu o campeonato de animação nos salões do clube, só sei dizer que a cada ano a disputa mais se acirrava. Começava nas ruas, nos barzinhos e pegava fogo no clube, onde cada um buscava uma entrada mais triunfal e depois mantinha os foliões pulando mesmo durante os intervalos.

O aumento descontrolado do número de componentes dos dois blocos causou alguns problemas sérios. Em 1986, por exemplo, uma briga de rua (que partiu de pessoas estranhas aos grupos) envolveu e colocou em lados opostos membros dos blocos e esse desentendimento isolado, sem qualquer vínculo com os núcleos centrais, acabou contaminando a todos.

Sem o mínimo interesse em apoiar ou sustentar qualquer tipo de contenda física durante os festejos, as diretorias envidaram esforços e conseguiram evitar outras brigas até o último dia. Mas, infelizmente, por volta das 2:00 horas da manhã da quarta-feira o pau quebrou dentro do salão e muita gente se feriu.

No ano seguinte tivemos outro problema. Na última noite entrei na secretaria do clube para pegar um cartaz de divulgação dos bailes, eu precisava de dados para escrever um artigo sobre o carnaval que seria publicado no jornal Folha Salgadense, de propriedade do advogado Dr. Ayres Pereira dos Santos. Ao abrir a porta, surpreendi uma reunião entre a comissão julgadora e alguns representantes do Tô-Que-Tô.

Imediatamente reuni nossa diretoria e relatei o episódio, procuramos o Presidente do Clube, Dr. Eduardo Gomes, que não estava na reunião, não tinha conhecimento dela. Avisamos que diante do acontecido não aceitaríamos um resultado que não fosse nossa vitória, pois a reunião havia colocado sob suspeita a comissão julgadora.

É lógico que o Tô-Que-Tô tinha todas as condições para vencer, mas seria mais justo e transparente se um representante do nosso bloco também tivesse participado do encontro..

O Presidente do Clube anunciou o resultado: “pelas notas dos jurados deu empate entre Maluko e Tô-Que-Tô, mas como Presidente e com direito ao ‘voto de Minerva’, o vencedor é o Maluko”. Aí a coisa ferveu de novo, o Tô-Que-Tô e os diretores do clube que estavam na reunião secreta estrilaram, querendo que o Dr. Eduardo voltasse atrás e virou uma confusão só.

Para evitar que a briga do ano anterior se repetisse tiramos todo o bloco do salão, umas trezentas pessoas. Às 3:00 horas da manhã bloqueamos um quarteirão da Avenida Diogo Garcia, entre as Ruas Dr. Bruno e José Desidério, instalamos o som na calçada, ao lado de dois freezers cheios de cerveja gelada e festejamos até o dia clarear.

Até hoje acredito que se não tivéssemos tomado conhecimento daquele encontro furtivo e suspeito, teríamos aceitado inocentemente a derrota. Depois, o fato de a comissão ter declarado um empate após a pressão exercida por nossa diretoria e pelo próprio presidente, nos deu a sensação de que tentaram ajeitar as coisas depois do flagrante.

A meu ver, a culpa exclusiva pelo acontecido foi de alguns membros da Diretoria do Clube. Talvez os amigos do Tô-Que-Tô tenham uma outra visão do fato, mas a realidade é que aquela reunião pegou muito mal, estragou a festa de todos.

Foi a última vez que participamos da disputa. Para evitar que esse tipo de desentendimento atingisse outras vezes a festa do carnaval, nos anos seguintes comunicamos por escrito à Diretoria do Clube que apesar de freqüentarmos os bailes, não estaríamos mais concorrendo aos prêmios, com exceção dos foliões individuais, categoria na qual o nosso Vande Mendonça era imbatível: venceu por três anos consecutivos e eu, nestes mesmos anos, fiquei com o vice-campeonato.

Deixamos de nos preocupar com a competição, mas jamais de contribuir para a festa, a animação, a alegria e, principalmente, o grande congraçamento de amigos que sempre aconteceu nos carnavais salgadenses.

Rivalidade à parte, era uma satisfação enorme encontrar os amigos dos outros blocos nos salões, abraçá-los com força e consideração. Sentir que o mais importante de tudo era a graça de viver e de saber que ali ao lado havia alguém que queria partilhar a sua felicidade, que fazia questão de dividir a fração, a parte inteira, o iceberg e a fogueira, como disse um poeta.

Tudo caminhava assim até que outros fatos se desencadearam, como o arrefecimento dos bailes de salão, o precoce desfazimento do Maluko (praticamente anunciado quando eu e Júnior Seraphim tivemos divergências internas e deixamos o grupo em 1990), o gigantismo de alguns blocos em detrimento das reuniões de amigos, tudo conduzindo ao bruxuleio que acometeu nosso carnaval por alguns anos.

Ainda bem que tempos depois as coisas tomaram outro rumo, o carnaval renasceu, o Tô-Que-Tô sobreviveu e se tornou o mais sólido dos blocos do carnaval salgadense, e seus foliões devem continuar comemorando e celebrando a vida.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Arreata Nova

Com a ajuda de blogueiros solidários, outras comitivas formadas por companheiros de marcha nesse estradão poeirento chamado internet, consegui melhorar o visual do Proseando.

Espero que gostem.

Dizem os velhos boiadeiros, que quando a arreata é nova a tropa fica faceira, anda de banda, pisa de lado. Então, apreciem a nova tralha de arreio.

Quando a montaria troca o passo, ouve-se o ringir das correias novas.

Troquei só a arreata, a montaria é a mesma.

E como dizia meu grande amigo João Carlos, lá de Araçatuba, o cavalo é do patrão, mas a espora é minha.

Não descuidem da culatra, porque o ponteiro não afrouxa na guia.

Viaja boi!!!

CAL

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Memória 25 - Carnaval

Salgadense Esporte Clube - Carnaval de 1984. 1-Gauchinho, 2-Nelsinho Cervantes, 3-Angela Cavenage, 4-Elane Arruda, 5-Paulo Sales, 6-Beto Ráo, 7-Bacana, 8-Agnaldo Costa, 9-David Cristoni e Celinha, 10-Bete Vieira.

Maluko 1984 - Eliana Marques, Junior Seraphim, Cássia Giamatei, Miriam Lacerda, Zé Antonio Fernandes, Marquinhos Secches e Bacana.

Maluko 1984 - Angela Cavenage, Eliana Marques, Beto Ráo, Paulo Sales, Elane Arruda e Agnaldo Costa. Os Malukinhos são: Juliana Salla, Adriana Cavenage e Priscila Cabrera.

Maluko 1985 - Vilmar Prado, Beto Sales, Carlos José, Junior Seraphim, Zé Antonio Fernandes, Paulo Sales e Tino Sorroche. As crianças são Caiçara e Ivan Fernandes.

Maluko 1985 - Cristiane Neves, Carlos José, Claudia Oliveira e o malukinho Marcellus Fantini Moraes.
(fotos: Álbum do blogueiro)

Uma Aventura Chamada Maluko

Maluko - Parte dos fundadores do Bloco Maluko durante o carnaval de 1982.
Em pé: Zé Iannela, Susiê Yano, Elane Arruda, Regina Cervantes, Lezir Cardoso e Miriam Lacerda. Agachados: Tino Sorroche, Birolinho, Carlos José, Valdir Cardoso, Alexandre Sorroche, Beto Ráo, Junior Seraphim, João Duran e Zé Antonio Fernandes.
Birolinho e Alexandre Sorroche nunca participaram do bloco, apenas saíram na foto.
(foto: Álbum do blogueiro)

Depois que alcançamos idade suficiente, começamos a freqüentar os bailes carnavalescos noturnos do Salgadense Esporte Clube e percebemos que os blocos fantasiados haviam perdido o ânimo. Apenas o Vira-Copo, formado basicamente por salgadenses que moravam na capital, resistia com muita animação e uma fórmula muito simples e barata: camiseta, embalo e copo.

No início de 1982 começamos a pensar em formar um bloco no mesmo sistema. Os veteranos bebedores do Vira-Copo eram quase profissionais do carnaval e nós estávamos apenas começando.

Faltando poucos dias para o primeiro baile, grande parte da turma ainda estava indecisa sobre aderir ou não ao novo cordão. Rabiscamos os nomes dos mais animados numa lista e despachamos dois amigos para Rio Preto a fim de conseguir as camisas. Havia um requisito básico estabelecido: o uniforme teria os nomes dos foliões, coisa inédita.

A escolha do nome foi fácil e surgiu de uma historinha curiosa. Alguns meses antes, um sujeito meio louco conhecido como Mosquitão, salgadense que vivia em São Paulo, (e que de vez em quando aparecia por aqui para aprontar umas artes), estava tomando umas cachaças na Lanchonete do Frota acompanhado de um grupo de garotas. Lá pelas tantas ele se desentendeu com as meninas, tirou da cinta e mais por farra do que por qualquer outra coisa, passou o couro nas moças. Enquanto batia ia dizendo: “toma maluca, toma maluca”.

A palavra pegou entre os que ficaram sabendo da história, que começaram a se chamar de maluco (ainda bem que a moda que pegou foi a palavra e não o couro). Daí para colocar o nome no bloco foi um pulo. Para diferenciar, pois era carnaval, mudamos a grafia para “maluko”.

Consegui com o Professor Erotides de Paulo, Diretor da Escola Tonico Barão, onde eu era Presidente do Centro Cívico, o empréstimo de alguns instrumentos da fanfarra e botamos o bloco fazendo barulho na rua.

Era ano de eleições municipais e depois de algumas voltas na praça, formamos uma grande mesa na Lanchonete do Zé Frota e passamos a exigir rodadas de cerveja dos candidatos a vereador. Fazíamos um batuque danado gritando: “fulano 82, fulano 82”, até que o candidato patrocinasse a remessa.

Acreditem, até o Professor Yano pagou cerveja para a gente!

Depois desse aquecimento de primeira partíamos para o Clube com uma única determinação: pular a noite inteira e tentar acompanhar o embalo dos “velhinhos” do Vira-Copo.

A partir da primeira noite do carnaval daquele ano os fundadores do Maluko mudaram a história do carnaval salgadense. Tomara que eu não tenha me esquecido de ninguém: Beto Ráo, Fabíola Belletti, Lezir Cardoso, Nelson Seraphim Júnior, Elane Arruda, João Duran, Eliana Marques, Zé Antonio Fernandes, Carlos Dadona, Ângela Cavenage, Tino Sorroche, Carlos José de Almeida, Miriam Lacerda, Cássia Giamatei, Cláudia Cunha, Regina Cervantes, Susiê Yano, Zé Roberto Iannela e Valdir Cardoso.

Logo no primeiro dia, entre a saída da casa do Júnior Seraphim e a entrada no salão do clube o bloco ganhou mais um folião: Vande Mendonça. A nossa iniciativa, juventude e animação fizeram com que ele se agregasse imediatamente ao grupo e passasse, dali por diante, a ser um dos principais símbolos dos nossos festejos carnavalescos.

Com o sucesso do bloco – recebemos a premiação do clube – tínhamos que solucionar um problema: muitos amigos que haviam ficado em cima do muro queriam fazer parte do grupo no ano vindouro. A minha opinião era de que deveríamos acolher a todos e fortalecer a idéia de uma reunião da turma antes dos bailes, com churrasco e bebida. A idéia da reunião e da festa pegou, mas na votação que se estabeleceu para permitir a entrada dos outros amigos fui voto vencido.

Aqueles que foram impedidos de ingressar no Maluko resolveram formar um outro bloco no ano seguinte, e foi assim que em 1983 surgiu o Tô-Que-Tô. Apesar da amizade fraterna existente entre os componentes de ambos os grupos, o surgimento do Tô-Que-Tô fez nascer a maior rivalidade que já existiu no carnaval salgadense. É lógico que esta rivalidade esteve sempre restrita ao campo da disputa de blocos nos salões do clube pelo prêmio de melhor animação. Os atritos que existiram foram periféricos, jamais partiram dos núcleos centrais que sempre mantiveram o apreço e a fraternidade.

Em 1984 o Maluko inovou mais uma vez. Um primo do Júnior Seraphim - o Juca - era dono de uma banda de música em Piquete (SP), uma das melhores do Vale do Paraíba, chamava-se “Grupo Terra”. A banda tocou na festa de casamento de Walkíria Seraphim e Ângelo Cavenage e foi contratada para o carnaval. Encomendamos aos músicos um samba-enredo para o bloco. Foi a primeira vez que se ouviu sambas de enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro no carnaval salgadense.

Parte da letra do samba-enredo do Maluko falava mais ou menos assim: “Maluko traz e encanta com jeitinho / belo gesto do copinho / de cachaça com limão / e a noite não tem fim é uma criança / em que se bebe e se embalança / e machuca o coração / pega vira, vira, roda / deixa a loira levantar / tem Maluko, ai que beleza / e cachaça pra tomar”.

Neste mesmo ano criamos uma ala de crianças chamada Malukinho. A gurizada não ia para o salão, mas brincava nas matinês e freqüentava o churrasco. Priscila Cabrera, Bruno Marques, Ivan Fernandes, Juliana Salla, Alessandra e Paula Mendonça, Luciana Secches, Breno Giamatei, Tiozinho, todos foram malukinhos.

Como não havia fantasia a disputa dos blocos no salão ficava restrita à animação, ao agito. Por isso a entrada tinha que ser triunfal, os foliões podiam subir algumas vezes ao palco e durante os intervalos não ficavam parados para não perder o pique e a competição.

Resolvemos lançar mão da criatividade de novo. Em 1985 fizemos gravuras brilhantes nos rostos e cada um dos foliões entrou no clube portando uma pequena vara de bambu que trazia na ponta três balões coloridos. Quando o bloco entrou no salão e tomou toda a circunferência da pista furamos os balões com palitos de dente. Dentro havia talco misturado com confete e todo o salão ficou envolto numa grande e perfumada nuvem colorida. Foi de arrepiar.

Havia um detalhe muito importante nessa época que contribuía para a sobrevivência dos bailes no clube, e que a meu ver, a partir do instante em que deixou de ser observado pelos demais blocos, acabou matando o carnaval do clube. Todos os blocos tinham o compromisso de fechar as portas até 1:00 hora da manhã, e a obrigação de incentivar todos para irem ao clube. O Maluko sempre cumpriu essa regra, mesmo nos anos em que não participou da disputa de prêmios.

Além dos fundadores outros amigos se tornaram Malukos históricos nos anos seguintes: Marquinhos Secches, Piau (marido da Claudia Cunha, que partiu precocemente para o andar de cima), Paulo e Beto Sales, Vilmar Prado, Grilão, Gappa, Pereca e Lúcio Fernandes, Ecléia Fantini, Luciana Salla, Claudia Oliveira, Cristiane Neves, Paulinho Giamatei, Lucelena Prado, Vando Colombo. Também havia um grande contingente de paulistanos que adotou a cidade para brincar o carnaval: Bacana, Mingo, Hidrante, Lepô, Tim Tones, Menudo, Tremendo, Papel e Maurinho. Este último gostou tanto que ficou por aqui, casou-se com Marli Cardoso.

Como eu morava em Araçatuba ficava hospedado na casa dos amigos até que, a partir de 1986 fui adotado por Dona Lúcia e seu Marino Secches; passei a ser o “filho carnavalesco” deles. De madrugada D. Lúcia deixava preparada uma canja muito especial, daquelas de levantar a moral de qualquer folião.

E como eu gostava de dormir um pouquinho até mais tarde para descansar a contento, todas as manhãs o Marquinhos arrumava uns ajudantes para me jogar na piscina e recomeçar a folia.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Uma Canção

Em Chapadão do Sul (MS), onde passei a viver a partir de 1998, costumamos reunir um grupo de amigos para ouvir e tocar boa música. Dentre eles um argentino, Luis Sanchez, casado com uma brasileira, radicado há muitos anos no Brasil e que morou em vários cantos do país, inclusive na capital paulista. Além de música brasileira da melhor qualidade sabe tudo de música latina, canta e toca como poucos todos os ritmos sul americanos: boleros, baladas, chacarenas, guarânias, milongas, chamamés, polcas...

Numa das primeiras vezes que nos reunimos ele buscou no fundo do baú uma antiga canção que imediatamente me fez recordar General Salgado e nossa gente, especialmente de uma situação acontecida há muitos anos.

O grupo de salgadenses que foi morar na capital do Estado no final da década de 70 era muito festeiro. Assim como acontece até hoje com a grande maioria dos salgadenses que moram fora - especialmente os paulistanos - era comum trazerem amigos para a cidade, especialmente nos carnavais. Aliás, pode-se dizer que este fato é uma característica salgadense que se repete de geração em geração.

Deixe-me ver se lembro daquela turma: Nice e Luciana dos Santos, Joaninha, Gauchinho e Nice Perez, Bide, Eliani Benzatti, e um grande contingente de familiares do Sr. João Marques: Sérgio, Paulão, Vera, Carminha, Antonio Carlos, Tereco, Rute, Álvaro e Lourdes. Este grupo foi fundador do mais tradicional bloco de carnaval que já existiu em Salgado: o Vira-Copo.

Até o final da década de 1980, muitos blocos de fantasias freqüentavam o carnaval do Salgadense Esporte Clube. O Bloco dos Casais, por exemplo, era dos mais animados e dele faziam parte: Ivani e Norival Cabrera, Tinininha e Leumar Sirotto, Maida e Pedrão Lima, Rosa e Amauri Neves, Vilma e Tijolinho Constantino, Terezinha e Tanabi Lima, Edna e Cabo Onório, Ângela e Toninho Berti, Antonieta e Josafá Barcelos, além de outros.

Batata Bernabé, Marli Crivelari e Tia Neide, lideravam outro grupo bastante atuante e criativo. Suas fantasias eram esmeradas, cheias de adereços. Dona Cida, minha mãe, auxiliava nas confecções e me lembro de vezes em que eles aguardaram na minha casa o término das roupas até vinte, dez minutos antes do baile.

Sem tempo para a confecção de fantasias e pretendendo reunir os amigos salgadenses que moravam na capital, o Vira-Copo atacava só de camiseta e copo. Foi o bloco precursor das camisetas e inspirou o surgimento do Maluko em 1982. Foi o primeiro grupo de foliões a se preocupar apenas com a festa, o baile, a cachaça, o churrasco, sem ligar para a disputa dos prêmios. Apesar disso, foi premiado várias vezes pela animação ininterrupta dos foliões.

Numa das levas de paulistanos que vieram passar o carnaval na cidade havia três chilenos, dois deles, Sérgio e Reynaldo, namoravam as salgadenses Eliane Benzatti e Luciana dos Santos, respectivamente. O terceiro era irmão de Reynaldo e se chamava Patrício. De pronto se enturmaram e depois disso começaram a freqüentar a cidade com assiduidade.

Algum tempo depois Reynaldo montou em São Paulo um conjunto de música latina, que se a memória não me trai se chamava "Grupo Andes", formado por chilenos e bolivianos. É lógico que não demorou muito para que todos viessem a Salgado, tocaram num baile, fizeram show na Praça da Matriz. O grupo ficou uma semana festejando e também se apresentou em Auriflama.

Os gringos gostaram tanto do povo e da cidade que voltaram no carnaval. Dividiram-se entre os bailes do Salgadense e do Uirapuru, pois tinham estabelecido boas amizades com os festeiros auriflamenses. Anos depois em Araçatuba, eu ainda cursava a Faculdade e fui a um show do grupo Raices de América, famoso pela divulgação mundial da música latina e formado por músicos de todo o continente sul americano.

Antes do show encontrei os amigos auriflamenses Cascão e Fernando Veschi e fiquei sabendo que alguns dos antigos componentes do Grupo Andes passaram a integrar o Raices. Durante o espetáculo confirmamos a presença deles no palco e ao seu término fomos encontrá-los nos camarins. Eles se mostraram saudosos dos momentos que passaram na região.

Do grupo de estrangeiros que adotou Salgado, Sérgio continuou freqüentando a cidade depois que se casou com Eliani Benzatti. Anos depois Luciana casou-se com outro chileno: Leopoldo. Os dois devem ser considerados salgadenses não só pela adoção e pela freqüência, mas também pela simpatia e pelas amizades que aqui granjearam. Dos demais não tive mais notícias.

Nos idos de 80, quando das visitas constantes dos chilenos todo fim de noite tinha festa e cantoria. Músico por excelência, exímio violonista e dono de uma voz grave e retumbante, Reynaldo se tornava o centro das atenções em todas as reuniões. Cantava todos aqueles boleros tradicionais e muita música latina.

Um dia alguém lhe pediu: toque a música que você mais gosta, a mais especial, aquela que você só canta quando está sozinho, para você mesmo. Depois de alguma resistência ele concordou em atender ao pedido e começou a cantar em espanhol uma canção cuja tradução é mais ou menos a seguinte:

"Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente / que a morte não me encontre um dia / solitário sem ter feito o que eu queria / Eu só peço a Deus que a injustiça não me seja indiferente, pois não posso dar a outra face / se já fui machucado brutalmente / Eu só peço a Deus, que a guerra não me seja indiferente / é um monstro grande e pisa forte / toda pobre inocência dessa gente / Eu só peço a Deus que a mentira não me seja indiferente / se um só traidor tem mais poder que um povo / que este povo não se esqueça facilmente / Eu só peço a Deus que o futuro não me seja indiferente / sem ter que fugir desenganado / pra viver uma cultura diferente".

O que se passou foi que enquanto cantava, Reynaldo manteve os olhos marejados e ao último verso seguiu-se um pranto profundo e desesperado. Desconfiamos no ato que a canção lhe fizera recordar da situação dificultosa pela qual atravessava sua terra natal, onde milhares de cidadãos sofriam sob a pesada mão da ditadura militar.

Depois, mais calmo, ele confirmou que a lembrança de parentes e amigos perseguidos e massacrados pelo monstruoso governo Pinochet ainda o emocionava por demais, por isso ele às vezes tentava evitar as recordações inevitavelmente provocadas por aquela canção tão linda.

Quase vinte anos depois, na primeira oportunidade em que ouvi o amigo Luis Sanchez cantando esta canção de autoria do compositor argentino Leon Gieco, e que se tornou um hino contra as ditaduras sul-americanas, a primeira coisa que me veio à mente foi a imagem de Reynaldo em meio aos amigos salgadenses, aflito, debruçado sobre o tampo do violão, chorando em desespero, revolvendo as tristes lembranças da terra natal que a canção lhe despertara e, por certo, do quanto fora difícil – para todos - fugir desenganado pra viver uma cultura diferente.

Chorando como um filho longe da mãe.

Longe da Pátria-mãe.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

A Folia do Divino

Folia de Reis - Chegada da folia no Sítio São Domingos (G. Salgado)
(foto: Álbum do blogueiro)

A região de General Salgado tem uma grande tradição em Folias de Reis. Nova Castilho, Gastão Vidigal, Nova Luzitânia, Santo Antonio do Aracanguá, são algumas das cidades que sempre promoveram festejos, saídas e chegadas de foliões em louvor ao Divino Espírito Santo.

A Folia de Reis chegou ao Brasil vinda de Portugal onde tinha como finalidade apenas o divertimento do povo. Entre nós adquiriu um sentido mais religioso. Reproduz a viagem dos Reis Magos (Gaspar, Balthazar e Melchior) a Belém para adorar ao Deus-Menino (Jesus Cristo) e comumente é organizada por devoção ou pagamento de promessas.

Em suas jornadas as folias percorrem ruas, estradas, vilas e povoados cantando as profecias e pedindo oferendas para a festa de encerramento da jornada. Cantam defronte das casas pedindo a abertura de portas, saúdam e pedem benção para moradores e familiares, contam as façanhas dos Reis Magos, passagens da vida do Cristo e finalizam agradecendo a acolhida e as ofertas. Seu ciclo de apresentação costuma ser de 24 de dezembro a 6 de janeiro.

A exemplo de outras famílias salgadenses, a minha também tem alguma tradição em tais festejos. Foi durante uma Festa de Reis no Córrego do Lajeado, patrocinada por vovô Álvaro de Almeida que meus pais começaram a namorar. Parece que enquanto os foliões cantavam, os palhaços saracoteavam e os instrumentos tiniam, dona Cida não tirava os olhos do escrivão da folia, que não sabia se olhava o caderno com as anotações das prendas ou se correspondia ao flerte.

Desde o nascimento também estou intimamente ligado aos Reis Magos. Por conta da noite muito mal dormida que tive no dia em que nasci, vovó Arandira Marques fez uma intenção religiosa aos Santos Reis, que no dia seguinte – depois de passado o susto - foram agraciados com o acréscimo do sobrenome “Reis” ao meu nome de batismo.

Há muitos anos, no mês de janeiro, promovemos lá na beira do Lajeado um pequeno festejo em louvor aos Santos. Nos primeiros sete anos a festa foi de vulto, com muitos convidados e a chegada da folia em grande estilo, combate de palhaços, passagem pelos arcos enfeitados, terço, loas e ladainhas. Depois de cumpridos os sete anos do compromisso assumido, continuamos com o evento em menor escala, apenas com o terço e pequeno grupo de amigos, mas com a mesma devoção e agradecimento pelas bênçãos recebidas.

De certa feita, quando ainda morávamos em Salgado, acompanhei por vários dias uma Folia, como parte do grupo de músicos. Foi para mim imensa satisfação principalmente por perceber como os foliões são pessoas simples, porém dedicadas e capacitadas.

Toda folia tem uma bandeira que a identifica e que simboliza, ao mesmo tempo, a jornada dos Reis Magos a Belém e a intenção com que os foliões se dispõem à peregrinação. A bandeira segue sempre à frente do grupo, ladeada pelo mestre e pelo contramestre, carregada por um folião a quem se chama de bandeireiro ou alferes. O estandarte geralmente se compõe de um pedaço de pano atado a um pequeno mastro, enfeitado de fitas, papel de seda, espelhos, rosas artificiais, emoldurando um motivo religioso, como a cena dos Magos sob a Estrela do Oriente a caminho de Belém. Algumas bandeiras estampam ainda os santos de predileção dos festeiros.

Os figurantes da folia dividem-se em foliões e palhaços. No primeiro grupo estão os músicos, o bandeireiro e o escrivão. O chefe da folia é o mestre, autoridade suprema a quem todos devem obediência. Recai sobre seus ombros toda a responsabilidade do grupo que comanda. A ele compete ainda dirigir a orquestra, manter a disciplina, iniciar e encerrar os cânticos. O contramestre é o substituto eventual do mestre, é o encarregado de complementar a cantoria. Os demais formam o coro de repetição. Ao escrivão compete registrar as doações e oferendas.

Os palhaços são divertidos e irreverentes, no desenvolvimento do Auto constituem-se na grande atração popular da folia. Vestem-se com uma espécie de pijama de pano colorido, carregam um pequeno embornal, usam máscaras de estranha figura e empunham uma longa espada de madeira, com a qual se exercitam durante as exibições. Promovem troças, zombarias, fazem gracejos para com os foliões e os demais presentes, recitam versos religiosos e fazem a comunicação entre o mestre e o dono da casa, comumente chamado de “patrão”.

Para chegar à porta de uma casa a folia deve obter permissão do dono. Em seguida deve postar-se à entrada e entoar cânticos contando a missão empenhada, louvando a bandeira, saudando o dono da casa e pedindo permissão para adentrar. O dono da casa deve segurar a bandeira e depois adentrar a casa à frente da folia. No interior da residência a folia entoa novos cânticos, desta vez pedindo oferendas, encomendando bênçãos e convidando para a festa de encerramento da caminhada.

Assim como os palhaços adoram saracotear, dançar com saltos e meneios, mexer com os circunstantes e arreliar as crianças, os donos da casa também podem preparar-lhes algumas brincadeiras, como esconder moedas ou notas dobradas em lugares próximos à entrada da casa, condicionando a entrada da folia à localização destes mimos. Durante as cantorias também podem aprisionar os palhaços, arrastando-os para outros cômodos, ainda que à força. Quando isto acontece o mestre fica obrigado a entoar cânticos pedindo liberdade para seus “soldados”, para que a folia possa seguir adiante.

Mas a participação dos palhaços também tem um lado bastante sério, pois estão vinculados a severa disciplina. Devem obediência ao mestre, não podem passar adiante da bandeira, devem ficar ao lado ou atrás dela. Nos intervalos das cantorias costumam fazer saudações religiosas, dando vivas aos Reis Magos, a Nosso Senhor, à Virgem Maria, aos foliões e aos donos da casa, tudo isso em desabalada carreira, a voz aos ofegos, característica da ginástica e da gritaria que fazem parte de seu ofício. Quando alguma prenda é ofertada em nome de algum ente familiar já falecido, os palhaços se ajoelham, cruzam as espadas e nesta posição devem aguardar que o mestre, cantando, encomende bênçãos à alma do finado.

São rituais e costumes arraigados à alma do nosso povo, tradições que acabam passando de pai para filho e que não podem, a meu ver, deixar de ser cultivadas com zelo, dedicação e respeito.

Para finalizar uma historinha de foliões, que me foi contada pelo amigo Waldomirinho. Em Magda (SP) havia um cidadão que todo ano cumpria promessa de atuar como palhaço de Folia de Reis. Era um sujeito forte, obeso e que, por mal dos pecados, costumava exagerar na cachaça. Bastava o mestre baixar a vigilância e ele ia bebericando aos poucos, até que no final do dia quase não se agüentava de pé.

Certo dia, valendo-se da frouxa vigilância bebeu mais do que de costume e, antes do término das funções do dia, durante uns passos de dança mais ousados, estatelou-se no chão, ficando ali estirado, obrigando o mestre a encerrar abruptamente a cantoria. Os companheiros foram até ele e começaram a cutucá-lo, pedindo para que se levantasse, pois a função tinha que continuar.

A cada tentativa de levantá-lo do chão os amigos ficavam com pedaços de sua roupa na mão. O mestre, já se mostrando nervoso e contrariado com aquela atitude, chamou-lhe a atenção de forma ríspida:

- Rapaz, você tá pensando que isso aqui é brincadeira? Levante daí, onde se viu um palhaço de folia esparramado no chão!

O rapaz abriu um olho, deu uma espiada na braveza do mestre e justificou-se, com a voz pastosa:

- Calma seu mestre, se o senhor não sabe, tem uma parte do ofício que é deitado!