segunda-feira, 24 de março de 2008

Miado de Rã

Foi-se o tempo em que a garotada vivia empunhando estilingue e bodoque atrás de passarinhos.

Em Nova Castilho costumávamos reunir uma turma para sair caçando pelas fazendas vizinhas e depois combinávamos um encontro para que a mãe de um dos caçadores preparasse os quitutes: pombas, rolinhas, codornas, nhambus, perdizes e outras aves de apurado sabor, e que devorávamos com prazer.

Depois de mais crescidos alguns caçadores ganharam espingardas de pressão e foram paulatinamente aposentando os estilingues.

Antes de encerrar minha carreira de caçador tive a oportunidade de usar as cartucheiras, especialmente de calibre 40, mais apropriadas para pequenas aves.

Como a vida da gente muda não é? Há muito tempo eu acho um absurdo caçar ou prender passarinhos, mas na minha adolescência tudo isso era visto como uma coisa normal. Nunca gostei de passarinho preso, mas adorava quando papai aparecia em casa trazendo uma codorninha dependurada na cabeça do arreio.

Também era muito normal naquele tempo chegar à casa de alguém e encontrar a mesa posta com algum tipo de caça: tatu, cotia, paca, capivara, preá, jacaré; tudo isso eu experimentei e gostei.

Mas sempre tem aqueles que exageram na dose e passam a experimentar e gostar de umas iguarias estranhas. Conheci um médico em Araçatuba que comia cobra e outro cidadão que adorava comer teiú. Isso mesmo, aquele imenso lagarto comedor de ovos que vive rodeando o poleiro das galinhas.

Quando se fala de comida cada um tem um gosto e também suas manias. Quando criança eu adorava comer o miolo, cérebro de galinha ou de leitoa. Ah! que delícia!

Outra coisa também muito natural na minha infância e para a qual muitas pessoas torcem o nariz é o testículo do boi, que comumente chamamos de bago. Quando vovô Braz Firmino reunia a peonada para a tradicional castração dos bois, a gente ficava na expectativa de que vovó Arandira faria uma bagada de primeira. Comer ela não comia (e nunca comeu), mas preparava tão bem que nunca mais encontrei igual.

O saudoso Jaburu – de tantas e tantas artes - adorava tudo isso, caçar, pescar, preparar algumas comidas diferentes, inclusive bagos de boi. De certa vez descobriu que nuns banhados próximos ao Córrego do Gabriel abundavam gordas rãs.

A partir daí passou a caçá-las e prepará-las para os amigos. A cada quinze, vinte dias, fazia uma visita aos brejos e açudes da região e avisava a turma. Cada dia preparava um tipo diferente de prato e todo mundo adorava a sessão de degustação.

Quem ainda não experimentou não deve perder a oportunidade quando ela surgir. A carne de rã além de saudável é deliciosa. E não pense que você vai ver o bicho no prato e se espantar com a aparência. É a mesma de um frango em pedaços, as coxas da rã se assemelham em tamanho e forma à coxinha da asa de frango. O gosto é muito próximo do peixe.

Em se tratando desses pratos diferentes a maioria das pessoas não se atreve nem a experimentar, torcem o nariz de cara e ainda brigam com quem ofereceu. Por isso sempre acontece de as pessoas experimentarem enganadas para depois reconhecerem a delícia do petisco.

Recebi em Araçatuba a visita de três amigas salgadenses: Fabíola Belletti, Uta Garcia e Ana Luzia Cândido. Iam prestar uma prova ou algo assim e me deram a honra de hospedá-las. Com os amigos Zé das Vacas e Preto Cornélio, saímos no fim da tarde para tomar uns chopes, fomos a um dos mais tradicionais restaurantes da época, o Esconderijo.

Elas não sabiam, mas além do melhor chope da cidade o Esconderijo tinha a melhor porção de rãs da região. Fiz o pedido sem que elas percebessem e atrevidamente mentimos dizendo que era um peixe qualquer. Cientificadas da realidade em meio a uma enxurrada de chope, a estranheza acabou passando batido e elas não só adoraram como ainda pediram mais.

De outra vez aconteceu com minha irmã Cláudia e algumas amigas que a visitavam. Havia outro barzinho que preparava – só para a diretoria, ou seja, para os freqüentadores mais assíduos – uma bagada de boi daquelas especiais. Convidamos as moças para experimentarem um filé de piapara justificando que se tratava de um peixe do Rio Tietê, tradicional na região. Só depois que elas consumiram duas generosas porções foi que contamos a verdade. Até minha irmãzinha queria me bater.

Mas em matéria de prato exótico e gente enganada ninguém aprontou melhor que o velho Jaburu, o grande caçador de rãs de General Salgado.

As reuniões periódicas que os amigos promoviam na sua casa ficaram famosas, as notícias sobre os diversos pratos com rãs correram à boca pequena e muita gente queria ser chamada para os encontros. Tanto comentavam que muitas pessoas se interessaram em experimentar. Um seleto grupo de amigas avisou o anfitrião pedindo para que fossem convidadas na próxima oportunidade.

Num dia de semana as moças saíam da escola quando foram avisadas de que o Jaburu estaria preparando rãs especialmente para elas. Lá chegando perceberam que a turma estava festejando havia horas, já tinham comido uma porção e o cozinheiro preparava outra, esta reservada para as visitas especiais.

O prato foi servido e os demais disseram que estavam satisfeitos; a segunda remessa fora destinada exclusivamente às garotas. Depois do jantar elas reconheceram e confessaram que a carne de rã era realmente muito saborosa, especialmente se acompanhada de uma cervejinha glacial, como foi o caso.

No dia seguinte uma coisa estranha começou a acontecer com as meninas, o telefone tocava e ficava mudo, ao fundo se ouvia uma voz estranha: “Miau!”.

Uma delas passou defronte à loja veterinária do Jaburu e lá de dentro ouviu alguém gritando: “Miaaaaaaaau”. Com as outras a mesma coisa. De desconfiadas passaram ao desespero, do desespero ao nojo, do nojo ao ódio e só não partiram para a agressão porque os gozadores davam tanta risada que elas não criaram coragem suficiente.

A verdade é que dias antes Jaburu havia matado a tiros um gato que teimava em perseguir os passarinhos que viviam no quintal de sua casa. Morto o animal, resolveu limpá-lo e guardá-lo no freezer, por certo apareceria alguma coisa para aprontar com o bichano.

Como naquele dia a turma chegou mais cedo para a festa e comeu toda a rã que estava realmente sendo preparada para as moças, o jeito foi levar o felino para a panela e oferecê-lo às convidadas Sônia Costa, Filó Iannela, Rosa e Lúcia Lopes.

Sei dizer que esta história correu mundo e é repetida há muitos anos com alguns detalhes diferentes, inclusive com a incorreta identificação das vítimas. A verdade é nua e crua como estou contando aqui e posso garantir que por muito tempo as moças não puderam sequer avistar um bichano atravessando a rua sem sentir revirar o estômago.

Hoje em dia – tantos anos depois – acho que suportam ouvir miado de gato novamente.

Só não podem sentir o cheiro!

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