segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A Mulinha do Gregório

Das façanhas alardeadas por Gregório Giamatei e repetidas por anos e anos entre os salgadenses, a melhor, em minha opinião, é a da mulinha estimada, um animal de montaria de muito apreço e serventia.

Dizia ele que morava num sítio próximo ao Córrego do Gabriel e tinha uma mula petiça alazã muito boa e marchadeira, dócil de boca e de toada; o mulão era um colosso, feita pra desfilar na cidade e arrancar suspiros das moças casadoiras. Não dava, não emprestava e não vendia por dinheiro nenhum.

Certa vez havia assumido um compromisso em Magda e lá deveria chegar ao amanhecer. Prevenido e para evitar atrasos quando fosse encontrar e arrear a mulinha de madrugada, no entardecer do dia anterior fechou-a no barracão das vacas leiteiras. Em seguida, conferiu as tralhas de montaria, os aperos, as correias engraxadas de sebo bovino, pelego novo, estribos, tudo no jeito.

Levantou-se antes do despertar do galo, noite escura, mal dava para enxergar mesmo acendendo as lamparinas de querosene. Ao sair para o quintal certificou-se de que a ausência de luar havia transformado a madrugada em puro breu. Foi com muita dificuldade, mediante apalpadelas que localizou o cabresto, o freio e a arreata.

Não fosse o conhecimento que possuía, o hábito formado por longos anos abrindo porteiras, atravessando cercas e colchetes, não teria encontrado sequer a curralama e o barracão das leiteiras, onde o aguardava a montaria de predileção. Seguindo o senso de direção armazenado na memória e praticamente tateando na busca de tramelas e engates, entrou no barracão chamando pela mula e, visualizando o seu vulto sonolento num canto do curral jogou-lhe o cabresto por sobre o pescoço.

Mesmo no escuro conseguiu colocar a cabeçada do freio, jogou os trastes no lombo do animal e apertou as barrigueiras. Mas quando levou o pé esquerdo no estribo estranhou a reação da mula. Antes mansa e pacífica, agora a montaria dava de tirar o corpo, negando o lado e o dorso.

Imaginou o peão que a danada estava de manha, contrariada por ter sido obrigada ao recolhimento do pouso. A mulinha adorava pousar no piquete dos bezerros onde pastorejava à vontade e havia abundante aguada. Sem o capinzinho verde e macio e também sem o de beber, a mula devia ter remoído um azedume a noite inteira e agora se achava no direito de descontar no patrão.

- Vou te mostrar que sou peão de respeito, mula teimosa!

Foi o que disse Gregório antes de ganhar o lombo. Talvez provocada pelo rompante do patrão a tinhosa deu de regatear. Cosquenta, deu de tentar tirar o peão de cima, negaceando para os lados; boca dura, endurecia o pescoço e não aceitava o comando das rédeas. A muito custo, valendo-se dos seus extensos conhecimentos de doma, e do uso conjugado de tala e espora, o peão conseguiu fazer a mulinha tomar tento, acatar as rédeas e se alinhar no rumo da trilha.

Por mais estranha que fosse a reação da montaria Gregório acreditava que poderia ser efeito do recolhimento, do pouso forçado dentro do barracão, coisa que nenhum animal aprecia. Até que compreendia a reação exagerada da mula. No caminho para Magda ia repassando mentalmente os exageros da danada e principalmente, os corretivos aplicados até que ela aceitasse os aperos ainda que a custo de espora nos vazios, do rabo de tatu nas ancas, dos trancos de rédea e bridão.

Ao longe cintilavam reflexos das últimas luzes acesas pelo casario de Magda, no rumo do horizonte foi surgindo vistoso o arrebol, os primeiros raios solares davam o ar da graça por detrás da mataria. Os pássaros noturnos, corujas e curiangos retornavam para seus alojamentos, a tímida luminosidade ia aos poucos destampando a manhã, fazendo subir o grosso véu da escuridão noturna.

Quando a manhã, com bocejos e espreguiçamentos se espraiou por inteira e a sua claridade tomou conta do dia, somente nesse instante foi que Gregório entendeu o desassossego da montaria, o comportamento marroaz e arreliento que custara corretivo de taca e de espora: estava montado numa onça!

A onça invadiu o curral, matou e comeu a mulinha indefesa, e por algum motivo tinha ficado presa no barracão.

Ah! Se não fosse bom peão e domador!

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