segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Reencontro

A secretária anuncia um novo cliente. Adentra minha sala, acompanhado por uma mulher, um senhor avançado nos anos, muito lúcido, com um característico ar de preocupação. Diz-se muito amolado porque, donatário de dois pequenos terrenos urbanos, necessita regularizá-los em nome da companheira. Teme que na sua falta os filhos do primeiro casamento possam prejudicá-la. Logo ela que ao longo de doze anos fora inseparável comparte, única a zelar por sua sobrevivência.

Analiso os seus documentos e descubro que ele havia se casado em General Salgado, portava inclusive, uma recente segunda via da certidão de casamento, assinada pela Escrivã Ruteli Cardoso.

- Que coincidência - anuncio - somos conterrâneos, também sou de General Salgado.

Ele me olha como se buscasse algo nos escaninhos da memória:

- Lá vivi por muitos anos até a juventude. Casei em 1945 e vim-me embora pra esse mundão de Mato Grosso. Nunca mais voltei.

Calculo por alto que ele conhecera a General Salgado dos anos 30 e 40. Aos poucos me conta daqueles dias, do pequeno arruado, um vilarejo, das pessoas que chegavam. Pergunto se ele conheceu alguém da Família Marques e seus olhos brilham:

- Conheci muito, fui muito amigo do Jeremias Marques, João Firmino...

Nesta altura quem se surpreende sou eu, e minha curiosidade o conduz à narrativa de fatos acontecidos há mais de 50 anos. Conto-lhe que sou neto de Braz Firmino Marques e ele exulta com a coincidência.

- Quem diria eu encontrar aqui um parente de meus amigos da juventude. Fui carreiro, carreei muito com Jeremias, João Firmino, João Luiz; seu avô Braz era mais moço, mas o conheci bem. Depois que vim embora nunca mais encontrei ninguém.

Conto-lhe detalhes sobre cada um deles, o que fizeram, como viveram, filhos, netos, e noto que aos poucos minhas informações vão nele preenchendo lacunas de muitos anos sem notícias. Ele me revela histórias passadas na companhia dos amigos, conta detalhes da vida simples que levava quase que totalmente resumida ao trabalho árduo. Esta volta ao passado parece levá-lo de novo à cidade que praticamente viu nascer. Por fim me pergunta:

- Me diga doutor, ainda estão todos vivos?

Ele recebe a notícia de que todos já se foram e mais uma vez lamenta ter ficado tanto tempo sem notícias.

- A gente tinha uma amizade muito boa, seu doutor.

Por fim, voltamos ao tema da consulta e garanto-lhe que posso lavrar o documento necessário à regularização de seus terrenos, pondo fim às suas preocupações. Ele me fita:

- Doutor, quanto vai me custar? É que os poucos recursos que me restavam eu usei para construir duas pequenas casas sobre os lotes.

Percebo que em alguns minutos de conversa eu havia recebido muito mais do que me custaria para lavrar o documento. Ele me havia contado coisas sobre a juventude de homens que sempre admirei e respeitei, os quais só vim conhecer no zênite da vida adulta. E sua saudosa narrativa só me fizera acreditar mais ainda naquilo que com eles aprendi sobre respeito, caráter, amizade, trabalho, honestidade...

- Não vai lhe custar nada, fica tudo em nome da amizade que o senhor teve com meu avô e meus tios.

Seus olhos marejam e ele me abraça:

- Deus o abençoe doutor.

Na saída, a esposa me chama de um lado:

- Doutor, me desculpe lhe pedir, mas faça o favor de providenciar o documento com urgência. De uns dias pra cá ele tem estado muito preocupado dizendo que vai morrer e que não quer me deixar desamparada.

No dia seguinte, como prometi, entrego-lhe o documento e peço que não mais se preocupe com o assunto. Cerca de quinze dias depois recebo consternado a notícia de seu falecimento. Todos na cidade lamentam, pois se tratava de um morador antigo, ilustre e considerado.

Cá no meu canto fico remoendo nosso encontro, pensando na vida, nas histórias que ele me contou da General Salgado juvenil e dos amigos que lá deixou. Também de como ele se apercebera da morte próxima, cuidando para que a inexorabilidade do evento não lhe impedisse de afastar prováveis obstáculos à sobrevivência da querida companheira.

Naquele dia, em minhas orações agradeci a Deus por tê-lo conhecido e aprendido um pouco mais sobre amizade, saudade, consideração. Também por ter renovado o respeito e a admiração para com meus antepassados, e por fim, pedi que, onde todos os amigos salgadenses agora se acham, lhes fosse concedido um reencontro fraterno, em nome da saudosa, porém eterna juventude.

5 comentários:

Anônimo disse...

Cal essa história é muito boa, e deixa claro que na vida nada é por acaso, "tudo que acontece" tem lá sua razão. E com certeza, esse achado arqueológico, valeu mais que algumas onças no bolso...

Um abraço..
Alex Marques Galhardo

Anônimo disse...

Nossa que linda história.
Fiquei emocionada...isso só vem nos mostrar quanto vale nossas amizades mesmo que distantes possamos manter nosso carinho e respeito por todos e jamais deixar no esquecimento pessoas que fizeram e fazem partem de nossas vidas!!Amo todos vocês...bjss saudosos da Marlizinha!!

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Primo, que história bonita! Fez com que eu voltasse no tempo... Lembranças das histórias que meu avô (sempre tão querido) me contava, quando aqui chegou, reviveram na minha memória. As histórias eram sempre assim: muito trabalho, vida dura e sem conforto, mas recheadas de respeito e honestidade; valores que fazem parte da nossa formação. Isso pode ser facilmente constatado no trabalho que você prestou a este senhor. Parabéns!

Um grande abraço,
Joice Elisa Marques

Carlos José Reis de Almeida (Cal) disse...

Essa história também me emocionou muito, lembrei de todos aquelas pessoas que admiro. Obrigado pelos comentários, voltem sempre.