terça-feira, 22 de abril de 2008

Meu Violão em Seresta

No ano 2000 as estatísticas oficiais diziam que o município de Nova Castilho, criado em 1997, tinha 991 habitantes. Fundado entre 1910 e 1915 e inicialmente chamado de Japiúba, foi em 1948 que o vilarejo recebeu o nome que homenageia com justiça a família Castilho, doadora das terras onde se instalou o arruado.

Tenho absoluta certeza que no início dos anos 70 a população do local era imensamente superior, possivelmente o dobro. A cidadezinha fervia de gente, era imenso o número de pessoas que residia nas mais de duzentas propriedades rurais existentes na área do município.

Os espetáculos eventuais, como circos, touradas, quermesses e festas religiosas eram freqüentados pela grande maioria da população, e nestas ocasiões as famílias se reuniam num congraçamento festivo.

Os grandes feriados como Natal e Ano Novo também eram motivos para grandes reuniões, com a turma indo de casa em casa obrigando os moradores a fazerem parte do cordão. Numa das comemorações de Ano Novo, me lembro que o Sr. Raniel Aleixo puxava a fila do grupo pelas ruas da cidade batucando no fundo de uma grande bacia de alumínio, cantando e intimando os transeuntes para que entrassem no bloco. No pescoço levava um comprido fio de barbante que trazia atado na ponta um pescoço de frango assado.

As crianças (eu entre elas) eram colocadas mais cedo na cama para que os pais pudessem festejar e uma das diversões prediletas eram as serenatas. A casa do Professor Paulo Camargo era das preferidas e ele costumava convidar alguns artistas da cidade para o evento.

Por conta destes encontros fiquei conhecendo alguns músicos salgadenses: Márcio Teixeira, Odair e Marão (que anos depois se tornariam Romano e Romeu), Fio, João e Natal de Melo (hoje conhecidos como Divaney e Deni-Rey). Não é preciso dizer que o violão me fascinou desde o primeiro instante.

Quando a presença dos músicos era impossível a turma improvisava: armava uma mini-vitrola movida a pilha na janela do visitado e soltava um pequeno compacto de vinil. A primeira música era oficial: João de Barro. Os visitantes se espremiam nos corredores ou alpendres das casas e se esgoelavam para acompanhar Sérgio Reis: “o João de Barro / pra ser feliz como eu / certo dia resolveu / arranjar uma companheira...”.

De vez em quando um menos avisado empurrava outro lá atrás e o efeito acabava prejudicando o desempenho do pequeno aparelho. A velocidade da música diminuía, o cantor desafinava, a agulha corria pulando trechos da música. Mas nada disso era capaz de atrapalhar a animação. Em questão de minutos os donos da casa abriam as portas da morada e da geladeira para receber os convivas e o festejo se aprofundava na madrugada.

Mudamos para a cidade e o animado grupo de castilhenses foi se esfacelando, outros também tomaram novos rumos. Enturmado com os citadinos, um dia alguém me convidou para participar de uma serenata, alguns amigos queriam homenagear uma salgadense que aparecia de vez em quando na cidade e nestas oportunidades desbaratava o coração dos adolescentes salgadenses. A família se hospedava no Hotel São Joaquim.

A homenageada recebeu a cantoria com certa indiferença, por timidez ou por não ter apreciado o intento dos admiradores não deu o ar da graça. Por uma incrível coincidência, vinte anos depois a reencontrei em Chapadão do Sul (MS), casada com o então prefeito do município. Seu nome: Maria das Dores Zoccal.

Nossa turma gostou tanto da aventura que decidiu promover serestas quase todo final de semana. O fato de ninguém saber tocar violão não foi empecilho, arrumamos um toca-fitas portátil. Avisávamos antes as moças para não assustar os familiares e nem errar de janela. Alguém tinha que ficar segurando o gravador no rumo da janela, enquanto isso os demais tentavam fazer silêncio.

Não foi possível evitar que alguns pais se assustassem com a brincadeira, principalmente porque a turma não conseguia manter silêncio durante todo o tempo. Numa das vezes em que a visita homenageava Regina Cervantes, o grupo de amigos se reuniu no quintal da casa, defronte à janela. De repente olhamos para o lado e nos deparamos com o seu Chico Cervantes, pai da moça, do nosso lado, verificando de perto a identidade dos barulhentos. A sorte é que ele conhecia todo mundo e relevou a algazarra.

De outra vez cometemos o erro de concordar que uns dois ou três mais avançados na cachaça fizessem parte do grupo; foi a maior besteira. Os bêbados não se aquietavam e acabamos passando vergonha na casa da amiga Milene Bertochi, pois os exaltados começaram a chamar seu Miguel de sogro assim que ele pôs a cara na porta da frente para conferir a presença dos farristas.

Da vez seguinte, quando tentamos impedir que os alcoolizados participassem foi pior. Emburrado e dizendo que a partir de então faria suas serenatas por conta própria, João Duran liderou um pequeno grupo dissidente, armou-se de um rádio AM e invadiu o alpendre da casa de Angélica Castilho. Sintonizou uma emissora, aumentou o volume e aproximou o aparelho da janela. Quando a música terminou, ele tentou localizar outra, e na correria achou um daqueles noticiários da madrugada:

- A Rádio Nacional de Cuba informou hoje que o Presidente Fidel Castro...

Decidi que o melhor era aprender a tocar violão. Tomei umas poucas aulas com o amigo Márcio Teixeira, comprei um instrumento à prestação nas Pernambucanas e passei a treinar diariamente. Aprendi umas duas ou três músicas e achei que já dava para o gasto. Avisei a turma e saímos na noite para a primeira aventura.

Ao saber da proposta a amiga Cláudia Cunha avisou que, se fosse a primeira homenageada nos presentearia com um litro de uísque. Para tornar mais emocionante a nossa estréia, convidou algumas amigas para dormir na casa dela. Se não me engano as amigas eram: Eliana Marques e Ângela Cavenage.

Assim que começamos a primeira música ela abriu a janela e passou o litrão de Old Eigth. A gente só sabia três músicas, mas achamos que ia ficar muito chato cantar as três e sair dali levando o litro. Então repetimos umas três vezes cada música. Lá pelas tantas percebi que o som do violão não estava bom e então descobri que enquanto a gente cantava o Mineirinho (Osvaldo Marques Junior) ia distorcendo as cordas. No escuro do corredor da casa do Zé Frota, ninguém percebeu e só quando a afinação desandou de vez foi que notamos a travessura.

Depois que o litrão foi devidamente esvaziado arriscamos entrar noutra casa, corredor apertado, fila indiana, eu puxando na guia e alguém deu um empurrão lá atrás. Quase perco o violão novo em folha, sobre o qual desabamos.

Houve vezes em que o pessoal da casa abria as portas e nos recebia. De vez em quando a gente errava a janela e o pai da moça abria uma fresta para dizer, com cara de sono: “é na janela do outro lado!”.

Algumas janelas se tornaram cativas e passaram a ser locais onde a gente não podia deixar de aparecer, porque as moradoras apreciavam a cantoria. Pelo menos era o que elas diziam: Fabíola Belletti, Uta Garcia, Claudia Cunha, Angélica Sbroggio, Maria Adélia Sirotto, Vânia Mendonça, Ângela Cavenage, Potô Chaves, Alessandra Mendonça, Cristiane Neves, Cláudia Oliveira.

De vez em quando a gente arriscava sair pela zona rural e visitava as casas das primas Eliana, Cleone e Neiva Marques.

Em muitas dessas noites de andança e cantoria aconteceram trapalhadas. Uma noite cantávamos na janela de Uta Garcia e ia passando pela rua outra turma, liderada por Lúcio Fernandes. Sem que percebêssemos acenderam uma bomba, dessas de festa junina, e soltaram no quintal da casa. No meio da música a bomba explodiu, saiu todo mundo correndo e, acho que o Dr. Ayres até hoje acredita que fomos nós quem acordamos todos da casa.

Para chegar à janela da Fabíola Belletti tínhamos que entrar no portão frontal, dar a volta nos fundos da casa e retornar pelo corredor do lado contrário. O caminho era comprido e o Gappa, para atalhar, costumava pular o muro no canto dos fundos. Em seguida ficava dentro do quintal aguardando a chegada do resto da turma.

Ficamos algum tempo sem aparecer por lá e ninguém nos avisou que o Zé Belletti fizera algumas reformas. No dia em que resolvemos voltar ao local, lá foi o Gappa pegar o atalho no cantinho do muro dos fundos. Subiu no muro e pulou para o quintal, no escuro. Caiu dentro da piscina que o Belletti havia mandado construir.

Mas a pior de todas foi protagonizada pelo meu primo Alcir Marques, o Cilinho. Começou a namorar uma garota salgadense e, não sei por que motivo, o pai da moça não gostou da história, ficou botando empecilhos. Um dia ele nos convidou pra fazer serenata na casa da namorada.

Altas horas da noite, depois de umas músicas românticas o pai da moça aparece no alpendre, com cara de insatisfeito. A gente já tinha tomado todas e, naquela altura do campeonato, ninguém estava mais ligando para compostura. Diante da cara feia do sogro Cilinho não titubeou e pediu uma música especial: Jorge Maravilha do Chico Buarque.

Para nossa segurança, a melhor parte da letra foi cantada já na saída do portão: “E como já dizia Jorge Maravilha prenhe de razão / mais vale uma filha na mão / do que dois pais voando / você não gosta de mim, mas sua filha gosta / ela gosta do tango, do dengo, do Mengo, domingo e de cócega / ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca / você não gosta de mim, mas sua filha gosta...”.

Foi a vingança perfeita, mas preferimos não esperar para ver a reação do pai da moça.

Ainda bem que estava escuro!

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