segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Uma Canção

Em Chapadão do Sul (MS), onde passei a viver a partir de 1998, costumamos reunir um grupo de amigos para ouvir e tocar boa música. Dentre eles um argentino, Luis Sanchez, casado com uma brasileira, radicado há muitos anos no Brasil e que morou em vários cantos do país, inclusive na capital paulista. Além de música brasileira da melhor qualidade sabe tudo de música latina, canta e toca como poucos todos os ritmos sul americanos: boleros, baladas, chacarenas, guarânias, milongas, chamamés, polcas...

Numa das primeiras vezes que nos reunimos ele buscou no fundo do baú uma antiga canção que imediatamente me fez recordar General Salgado e nossa gente, especialmente de uma situação acontecida há muitos anos.

O grupo de salgadenses que foi morar na capital do Estado no final da década de 70 era muito festeiro. Assim como acontece até hoje com a grande maioria dos salgadenses que moram fora - especialmente os paulistanos - era comum trazerem amigos para a cidade, especialmente nos carnavais. Aliás, pode-se dizer que este fato é uma característica salgadense que se repete de geração em geração.

Deixe-me ver se lembro daquela turma: Nice e Luciana dos Santos, Joaninha, Gauchinho e Nice Perez, Bide, Eliani Benzatti, e um grande contingente de familiares do Sr. João Marques: Sérgio, Paulão, Vera, Carminha, Antonio Carlos, Tereco, Rute, Álvaro e Lourdes. Este grupo foi fundador do mais tradicional bloco de carnaval que já existiu em Salgado: o Vira-Copo.

Até o final da década de 1980, muitos blocos de fantasias freqüentavam o carnaval do Salgadense Esporte Clube. O Bloco dos Casais, por exemplo, era dos mais animados e dele faziam parte: Ivani e Norival Cabrera, Tinininha e Leumar Sirotto, Maida e Pedrão Lima, Rosa e Amauri Neves, Vilma e Tijolinho Constantino, Terezinha e Tanabi Lima, Edna e Cabo Onório, Ângela e Toninho Berti, Antonieta e Josafá Barcelos, além de outros.

Batata Bernabé, Marli Crivelari e Tia Neide, lideravam outro grupo bastante atuante e criativo. Suas fantasias eram esmeradas, cheias de adereços. Dona Cida, minha mãe, auxiliava nas confecções e me lembro de vezes em que eles aguardaram na minha casa o término das roupas até vinte, dez minutos antes do baile.

Sem tempo para a confecção de fantasias e pretendendo reunir os amigos salgadenses que moravam na capital, o Vira-Copo atacava só de camiseta e copo. Foi o bloco precursor das camisetas e inspirou o surgimento do Maluko em 1982. Foi o primeiro grupo de foliões a se preocupar apenas com a festa, o baile, a cachaça, o churrasco, sem ligar para a disputa dos prêmios. Apesar disso, foi premiado várias vezes pela animação ininterrupta dos foliões.

Numa das levas de paulistanos que vieram passar o carnaval na cidade havia três chilenos, dois deles, Sérgio e Reynaldo, namoravam as salgadenses Eliane Benzatti e Luciana dos Santos, respectivamente. O terceiro era irmão de Reynaldo e se chamava Patrício. De pronto se enturmaram e depois disso começaram a freqüentar a cidade com assiduidade.

Algum tempo depois Reynaldo montou em São Paulo um conjunto de música latina, que se a memória não me trai se chamava "Grupo Andes", formado por chilenos e bolivianos. É lógico que não demorou muito para que todos viessem a Salgado, tocaram num baile, fizeram show na Praça da Matriz. O grupo ficou uma semana festejando e também se apresentou em Auriflama.

Os gringos gostaram tanto do povo e da cidade que voltaram no carnaval. Dividiram-se entre os bailes do Salgadense e do Uirapuru, pois tinham estabelecido boas amizades com os festeiros auriflamenses. Anos depois em Araçatuba, eu ainda cursava a Faculdade e fui a um show do grupo Raices de América, famoso pela divulgação mundial da música latina e formado por músicos de todo o continente sul americano.

Antes do show encontrei os amigos auriflamenses Cascão e Fernando Veschi e fiquei sabendo que alguns dos antigos componentes do Grupo Andes passaram a integrar o Raices. Durante o espetáculo confirmamos a presença deles no palco e ao seu término fomos encontrá-los nos camarins. Eles se mostraram saudosos dos momentos que passaram na região.

Do grupo de estrangeiros que adotou Salgado, Sérgio continuou freqüentando a cidade depois que se casou com Eliani Benzatti. Anos depois Luciana casou-se com outro chileno: Leopoldo. Os dois devem ser considerados salgadenses não só pela adoção e pela freqüência, mas também pela simpatia e pelas amizades que aqui granjearam. Dos demais não tive mais notícias.

Nos idos de 80, quando das visitas constantes dos chilenos todo fim de noite tinha festa e cantoria. Músico por excelência, exímio violonista e dono de uma voz grave e retumbante, Reynaldo se tornava o centro das atenções em todas as reuniões. Cantava todos aqueles boleros tradicionais e muita música latina.

Um dia alguém lhe pediu: toque a música que você mais gosta, a mais especial, aquela que você só canta quando está sozinho, para você mesmo. Depois de alguma resistência ele concordou em atender ao pedido e começou a cantar em espanhol uma canção cuja tradução é mais ou menos a seguinte:

"Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente / que a morte não me encontre um dia / solitário sem ter feito o que eu queria / Eu só peço a Deus que a injustiça não me seja indiferente, pois não posso dar a outra face / se já fui machucado brutalmente / Eu só peço a Deus, que a guerra não me seja indiferente / é um monstro grande e pisa forte / toda pobre inocência dessa gente / Eu só peço a Deus que a mentira não me seja indiferente / se um só traidor tem mais poder que um povo / que este povo não se esqueça facilmente / Eu só peço a Deus que o futuro não me seja indiferente / sem ter que fugir desenganado / pra viver uma cultura diferente".

O que se passou foi que enquanto cantava, Reynaldo manteve os olhos marejados e ao último verso seguiu-se um pranto profundo e desesperado. Desconfiamos no ato que a canção lhe fizera recordar da situação dificultosa pela qual atravessava sua terra natal, onde milhares de cidadãos sofriam sob a pesada mão da ditadura militar.

Depois, mais calmo, ele confirmou que a lembrança de parentes e amigos perseguidos e massacrados pelo monstruoso governo Pinochet ainda o emocionava por demais, por isso ele às vezes tentava evitar as recordações inevitavelmente provocadas por aquela canção tão linda.

Quase vinte anos depois, na primeira oportunidade em que ouvi o amigo Luis Sanchez cantando esta canção de autoria do compositor argentino Leon Gieco, e que se tornou um hino contra as ditaduras sul-americanas, a primeira coisa que me veio à mente foi a imagem de Reynaldo em meio aos amigos salgadenses, aflito, debruçado sobre o tampo do violão, chorando em desespero, revolvendo as tristes lembranças da terra natal que a canção lhe despertara e, por certo, do quanto fora difícil – para todos - fugir desenganado pra viver uma cultura diferente.

Chorando como um filho longe da mãe.

Longe da Pátria-mãe.

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