segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Tachinha

Chamava-se Laércio e, contando mais de trinta anos, vivia perambulando pela cidade carregando por sobre os ombros uma caixa de engraxate. Ficava por ali nas imediações do Bar do Toninho Mendonça. Fumava, bebia e brincava com todo mundo ainda que fosse, ao mesmo tempo, maltratado por todos ou, alvo predileto de brincadeiras e gozações.

Acho que o Tachinha viveu por mais de quarenta anos e durante todos eles sofreu a ausência de recursos e de atendimento especializado para excepcionais, que só foi superado quando criou-se na cidade uma unidade da APAE. Por conta deste abandono e do modo como viveu, foi mais um dos personagens folclóricos da cidade.

Vivia filando cigarros e trocados de todo mundo, nos diversos locais que freqüentava diariamente, escritórios, bancos, repartições públicas. Oferecia-se para engraxar sapatos e diante da negativa do possível freguês, acabava serrando uns cruzeiros para o almoço.

Certa vez deu de furtar pequenos objetos e acabou tomando umas bordoadas de policiais militares. Por conta disso um delegado que tentava mostrar serviço lavrou várias ocorrências policiais contra o infeliz.

Recém chegado à cidade, um Juiz de Direito “linha dura” verificou aquele grande número de ocorrências policiais contra o tal Laércio, vulgo Tachinha, e andou comentando pelos corredores forenses que possivelmente se tratava de um marginal de alta periculosidade e que, por certo, mereceria dura reprimenda penal.

Certo dia o magistrado assistia do alpendre de sua casa o cair de intensa chuvarada, quando avistou um indivíduo estranho correndo sob o pesado toró, rolando pelas poças d´água e fazendo guerra de lama com outras crianças de rua. Inquiriu um vizinho, querendo conhecer a identidade do deficiente mental, ao que lhe responderam:

- Aquele é o Tachinha!

No dia seguinte, dando-se conta do equívoco cometido pela polícia militar, pelo delegado e pelo juízo premeditado que fizera das ocorrências policiais existentes no Fórum, deu imediato fim aos processos, não só pela verificação do quanto era inofensivo o “delinquente”, mas também por sua incapacidade civil e penal, que redundava em inimputabilidade.

Não sei se é verdade, mas Tachinha vivia contando para todo mundo que fora vítima de abuso sexual. Parece que, sem compreender a situação por conta de sua total incapacidade, andara fazendo troca-troca com a molecada. Quando lhe perguntavam os nomes dos “parceiros” ele não titubeava em nomeá-los com voz afônica inconfundível.

- Mike, Vande, Calão, Dabeto...

Perguntavam-lhe quais eram as pessoas que mais gostava e ele ia dizendo nome por nome, principalmente aquelas que lhe dispensavam os trocados do cigarro e do sanduíche. De repente alguém colocava na lista o Cabo Eurípedes e ele, imediatamente, fechava a cara, fazia um muxoxo e saía do local chorando, lembrando as bordoadas que tomara no interior da delegacia.

Muitos anos antes de Tachinha, existiu em Nova Castilho um outro excepcional, conhecido por Nego. Tachinha padecia da Síndrome de Down, Nego era deficiente mental, retardado. Também era vítima de troças e zombarias, porém, muito bem tratado pela família. Tinha um irmão chamado Sebastião e várias irmãs.

Leonardo era um peão que trabalhava para tio João Firmino, muito competente, mas também muito ladino. Vivia “namorando” as irmãs de Nego. De vez em quando, retornando da lida, encontrava alguma delas pelas estradas na companhia do irmão. Apeava do cavalo e pedia para o Nego segurar-lhe o animal dando desculpas de que precisava se aliviar no mato. Sem que o irmão percebesse a moça saía de fininho e entrava no matagal acompanhando o boiadeiro. Nego esperava alguns minutos e, impaciente, gritava pelo dono do cavalo:

- Nardo, eu vou sortá teu cavalo!

Do meio do mato, a poucos metros de distância e sem interromper o namoro, Leonardo respondia, pedindo para que ele ficasse firme na vigilância do animal.

- Não solta não Nego, segura que eu já tô indo!

Dali alguns minutos nova ameaça:

- Nardô! Eu vou sortá teu cavalo!

Quando seu irmão Sebastião faleceu, durante o velório o Nego procurava um por um os conhecidos para se lamentar:

- O Bastião nunca tinha morrido. Morreu hoje!

E aos que lhe consolavam e lhe rendiam pêsames, acrescentava:

- E deixou uma camisa novinha sem usar, branca da cor de povil... (polvilho).

Nenhum comentário: