domingo, 9 de dezembro de 2007

Padre Victorino

A primeira vez que me lembro de ter visto o Padre Victorino Liñan Hitos foi folheando o álbum de fotografias do casamento de meus pais – Domingos e Cida -, isso quando eu ainda era menino novo lá em Nova Castilho. Os registros mostravam um padre moço, jovial, cabelos negros, olhar límpido e sereno.

Nós já havíamos nos encontrado antes, mas não guardei lembrança da cena em que ele borrifara água benta sobre minha cabeça - eu nos braços de vovó Arandira, segundo me contaram - no dia em que fui batizado. Sou como podem ver, apenas mais um dentre tantos outros salgadenses que ele abençoou, sem falar naqueles outros tantos que ele casou e depois tudo repetiu com filhos e netos.

Nascido na cidadezinha espanhola de Motril, nas proximidades de Granada, região da Andaluzia, Victorino foi mandado ao Brasil ainda estudante. A Congregação dos Padres Agostinianos à qual pertencia resolveu transferir seus discípulos para as pacíficas terras brasileiras, fugindo aos conflitos da guerra civil espanhola. Concluídos os estudos eclesiásticos, foi ordenado no dia 9 de maio de 1937, em Ribeirão Preto onde permaneceu por nove anos.

No dia 6 de agosto de 1955 chegou a General Salgado, paróquia então pertencente à Diocese de São José do Rio Preto. Identificou-se tanto com os paroquianos, que mesmo depois da mudança da diocese para Jales e da sucessão de bispos, entendeu-se como impraticável a sua saída de General Salgado. A cidade tinha o seu padre e todos desejavam que ele ali permanecesse para sempre.

Freqüentei as aulas de catecismo da Professora Helena Longhini, que eram ministradas depois do horário escolar, na casa de dona Cida Toledo, em Nova Castilho. Antes da primeira comunhão tivemos algumas aulas com o Padre. Guardávamos certo receio de sua aparente severidade, e ficávamos impressionados com a capacidade que ele tinha de conhecer todas as famílias, identificar as pessoas, saber onde moravam, essas coisas. Lembro-me que numa das aulas, com certa timidez lhe perguntei como é que se conversava com Deus, e a resposta jamais foi esquecida:

- A gente conversa com Deus através do coração!

Depois que me mudei para a cidade passei a freqüentar a Cruzada, um grupo de adolescentes católicos dirigido por Dona Lucila Veschi e que se reunia semanalmente no Salão Paroquial. Reuniões nas noites de segunda-feira, missa no domingo pela manhã (tínhamos que usar sobre a camisa branca uma faixa diagonal amarela) e um piquenique por mês na Lajinha.

Em todos esses momentos havia a participação circunspeta do Padre Victorino. Havia no grupo uma pequena disputa interna para atuar como coroinha nas missas de domingo, atividade na qual os irmãos Pio e Mané Bernabé eram quase imbatíveis. Além de chacoalhar as sinetas durante a celebração, o que a gente mais gostava era de subir na torre da igreja para dar corda no relógio da matriz.

Aos domingos ele costumava almoçar com os amigos, organizava um tipo de rodízio para contentar a todos. Muitas vezes fomos companheiros de mesa durante o lauto e tradicional almoço dominical de dona Marleine Seraphim.

A cada vez que saía da cidade para visitar a terra natal levava consigo um pequeno travesseiro recheado com terra recolhida de um dos canteiros de flores da praça. A quem lhe pedia explicação dizia simplesmente que se morresse longe de General Salgado ao menos lhe restaria o consolo de repousar para sempre sobre a terra salgadense.

Viajou à Espanha pela última vez quando completou 80 anos, em 1992, e por uma armadilha do destino, lá caiu doente necessitando longo período de recolhimento. Nunca ocultou, no entanto, o desejo de tornar à terra adotiva e tanto insistiu que foi capaz de reunir forças para a viagem.

Foi recebido com júbilo, carreata e foguetório e todos os salgadenses fizeram questão de demonstrar a saudade e imensa estima para com o bom pároco. O rebanho se regozijou ao rever a figura do esmerado pastor.

Praticamente imobilizado pela fraqueza decorrente da avançada idade e das seqüelas de um derrame, avistei-o pela última vez alguns meses depois do seu retorno, durante a tradicional Quermesse no Largo da Matriz.

Preso à cadeira de rodas ele ainda atentava para aqueles que procuravam estimulá-lo. Nos seus olhos resistia um lastro de entusiasmo e de satisfação por estar entre o povo que tanto amava. Meu pai quis testar-lhe a memória corroída pela debilitada saúde: “O senhor se lembra de mim?”. Levantou com dificuldades a mão direita trêmula apontando para o horizonte e sussurrou:

- Lá do Lambari! – a voz soou tremeluzente.

Remoendo a emoção de revê-lo e de senti-lo vívido, apesar das aparências, rememorei a cena em que ele encarou um pequeno e curioso aluno do catecismo, que aos oito anos de idade queria saber como se comunicar com Deus: “a gente conversa com Deus através do coração!”. Compreendi naquele instante o quanto Deus se comunicara com os salgadenses através do Padre Victorino.

Os ares da terrinha foram capazes de prolongar-lhe a vida por mais cinco anos, até que – por uma estranha coincidência do destino – no dia 6 de agosto de 2000, exato dia em que se comemoravam 45 anos de sua chegada à cidade, os salgadenses deixaram de lado suas atividades comuns para homenagear e conduzir à última morada o homem que empenhou sua vida em favor do povo que Deus lhe confiara. Contava 87 anos de idade.

O Bispo D. Demétrio Valentini fez questão de registrar suas homenagens, anotando que ao levar o Padre Victorino para sua companhia no mesmo dia em que havia chegado a General Salgado, quarenta e cinco anos atrás, Deus colocou, misteriosamente, o selo de sua Providência no testemunho que o amado pároco nos deixou: “a história mostra que é sobre o túmulo dos mártires que foram construídas as igrejas”, disse Dom Demétrio, “a Diocese agradece a Deus a herança que o Padre Victorino nos deixou, como baluarte de fé e testemunho de autenticidade cristã. Sua memória será guardada, com respeito e veneração. O Padre Victorino viverá, para sempre, no coração do povo que ele tanto amou”.

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