segunda-feira, 12 de maio de 2008

Casados x Descasados

Com quatorze anos de idade eu trabalhava no Cartório de Registro Civil de General Salgado, então comandado pelo Escrivão Hésio Rodrigues de Carvalho.

Seu Hésio era uma figura ímpar, um senhor com mais de 60 anos muito elegante e alinhado, cabelos grisalhos bem penteados, sapatos engraxados, guarda-chuvas no braço. Quando adentrava os corredores forenses o pessoal nem precisava vê-lo para saber de sua chegada, pois sua passagem ia sendo revelada pelo perfume que dele recendia. Por isso era carinhosamente chamado pelos colegas de Cheiroso.

O cartório funcionava aos sábados por causa dos casamentos civis que eram realizados. Como eu havia aprendido todo o funcionamento do cartório, seu Hésio (em conluio com o juiz de paz Melentino Cardoso) decidiu me ensinar a celebrar os casamentos. Escreveu o palavreado numa folha e fui eu ajudar seu Melentino.

Da primeira vez as pernas tremiam, a voz ameaçava falhar. Semanas depois eu nem precisava do papelote, tinha decorado tudo.

Por quase cinco anos ajudei a sacramentar o enlace de muitos salgadenses. Seu Melentino fazia algumas perguntas básicas sobre livre e espontânea vontade e em seguida declarava que a partir daquele instante o casal era marido e mulher. Aí entrava eu sapecando o texto decorado com o acréscimo dos dados sobre os nubentes, filiação, naturalidade, essas coisas.

A gente adorava quando o casal pedia para fazermos o casamento fora do cartório, ou seja, no local da festa, pois acabávamos pegando carona no evento. Na zona rural era mais gostoso, casamento de fazenda não acontecia sem aquela churrascada.

Ao final de cada casamento, depois que os noivos e os padrinhos assinavam o termo, seu Melentino entregava a certidão de casamento e repetia os votos de felicidades, no final acrescentava uns conselhos:

- Juízo, meus filhos!

Um casal de sitiantes de Nova Palmira, convivendo há mais de quarenta anos resolveu regularizar a situação dos filhos com o casamento civil. Os dois tinham ultrapassado os 60 e, ao final da cerimônia o juiz de paz nem se deu conta. Repetiu o mesmo palavreado, recomendando juízo aos contraentes.

Seu Melentino conta que há muitos anos, no tempo em que o sujeito era obrigado a casar para salvar a honra da moça desvirginada, um pai prestou queixa na Polícia dizendo que a filha havia sido desonrada e o autor do fato se negava ao casamento.

Forçado pelo Delegado de Polícia o cidadão não teve outra saída, aceitou o matrimônio. Para impedir alguma surpresa o delegado determinou a um Sargento que acompanhasse a cerimônia. Na hora do casamento o juiz de paz perguntou ao noivo se ele aceitava a noiva, e se o fazia espontaneamente. O rapaz coçou a cabeça, olhou para o lado e se assustou com a cara séria do miliciano. O jeito foi concordar:

- Já que é assim que o Sargento quer, eu aceito!

Anos depois, como advogado, me vi atuando do outro lado da situação. Ao invés de sacramentar a união dos casais passei a formalizar suas separações.

Talvez por conta do fato de ter vivido aquela experiência, convivido por muito tempo com a felicidade que os casais demonstram na hora do casamento, não sei atender a um casal que pretende se separar sem fazer uma – ainda que pequena – tentativa de reconciliá-los. Mesmo que o sucesso da empreitada, no caso, possa redundar em deixar de fazer o serviço e conseqüentemente não receber honorários.

Em mais de vinte anos de advocacia tive a oportunidade de divorciar até mesmo casais que eu, ainda garoto de tudo, havia ajudado a casar ao lado de seu Melentino.

Depois que a Constituição Federal passou a considerar a união estável como entidade familiar, voltei a unir casais através de ações que visam o reconhecimento da convivência e a preservação de direitos. Atualmente está em moda o contrato de namoro, pessoas divorciadas e proprietárias de bens, que começam a namorar outras na mesma situação buscam precaução através desses contratos, a fim de que o namoro não seja confundido com a união estável. Para isso solicitam a lavratura de um pacto dizendo que a união é um simples namoro e que, ao final dela, ninguém ficará devendo nada para ninguém.

Eu acredito na união das pessoas independentemente das formalidades. Depende do que elas esperam da união, pois, a forma com que foi sacramentada não é capaz de tornar a convivência mais ou menos sólida.

São outros os fatores responsáveis pela segurança ou pela fragilidade do relacionamento, dentre eles o respeito, a consideração, a amizade, o companheirismo e, logicamente, o amor. Enfim, acredito que o casamento (ou a convivência marital) é um estado de espírito.

Mas quando o casal resolve se separar a grande maioria dá mostras claras de que perdeu tudo isso, foi-se o respeito, a consideração, e os dois brigam até por causa de panela.

Conheço um salgadense casado há muitos anos com a mesma mulher, filhos adultos, que diz ter atravessado algumas crises de relacionamento com a esposa, chegando a falar em separação.

Apesar dos desentendimentos o casal se mostrava pacífico, mantendo, pelo menos, a amizade e a consideração. O marido disse à mulher que caso a decisão fosse pela separação ele sairia de casa, ela ficaria com os filhos, os móveis, a casa, ele pagaria a pensão e visitaria os filhos na medida do possível. Fez uma única restrição:

- Eu só quero o nosso colchão! Você pode ficar com o todo o resto. Eu só quero colocar o colchão no meio da rua e botar fogo!

A mulher não entendeu nada. Para quê o marido pretendia levar de casa apenas um velho colchão. Insistiu até que ele se explicou:

- A gente vai se separar, você vai tocar sua vida e eu a minha. Daqui a algum tempo você se casa de novo, eu não me oponho, tudo fica bem! Eu só não quero saber de outro sujeito fazendo festa em cima do meu colchão!

Um comentário:

Anônimo disse...

adorei a historinha é muito realista,pois,vivi uma situação de pura ilusão durante 13 anos. estou em cacos...separar os corpos é fácil, dificil é separar vidas e lembranças. jade pelotas-rs