Existem algumas datas festivas nas quais os salgadenses que moram longe não deixam de visitar a cidade. Acho que as mais concorridas são o carnaval e a Festa do Peão, esta última acontecendo – há mais de 20 anos – nos meses de julho.
Algumas Festas do Peão deixaram marcas na história da cidade, como, por exemplo, uma em que a arquibancada ruiu, deixando muitas pessoas lesionadas. Foi num dos primeiros anos no novo recinto e a repercussão negativa do fato levou a Associação de Tradições Rurais a envidar esforços para a construção das arquibancadas definitivas, em alvenaria.
Em 1986 o evento se deu pouco mais de um mês depois do falecimento de vovô Braz Firmino e a homenagem a ele prestada pela Associação nos tocou profundamente. Aliás, a meu ver, as merecidas homenagens que a Associação presta para aqueles desbravadores que nos deixaram constitui um dos pontos altos do evento, que deve ser utilizado para a valorização das nossas coisas do interior, da nossa cultura, da nossa gente, e também, para mostrar às novas gerações que aqueles que as precederam lutaram com suor no rosto para construir tudo o que hoje temos em nossa comunidade.
Durante os dias em que acontece a Festa do Peão de Boiadeiro, há pelo recinto um misto de festa e congraçamento, eis que os reencontros são inevitáveis. Amigos que se revêem uma vez por ano aproveitam para matar as saudades, colocar as novidades em dia, apresentar as novas namoradas, mostrar os filhos que vão crescendo, coisas assim.
Para ampliar o tempo de convívio destes reencontros, de vez em quando reunimos uma pequena turma para um churrasco no sábado durante o dia. Alguns dos encontros aconteceram no sítio do meu sogro Zé Ramos, no Córrego do Gabriel.
Nas oportunidades em que foi possível reunir o grupo em nosso terreiro, eu e minha amada Samanta posamos de anfitriões e assumi com imensa satisfação o comando da churrasqueira. Como quase todo mundo mora fora, ajustamos previamente a divisão das tarefas com os demais.
As mulheres se encarregaram dos drinks (caipirinhas e batidas), dos pães e molhos. Elegemos uma dupla para cuidar da cerveja e do gelo, outra para preparar o local. Não abro mão de escolher pessoalmente tipos e peças de carnes, calcular as quantidades, salgar, espetar, levar às brasas e ficar vigiando até o ponto ideal.
Preciso abrir um parêntese para contar – ainda que imodestamente - que sempre deixo o ponto alto da festa para depois das quatro horas tarde, quando ofereço uma costela que ficou tomando calor de fogo desde o meio dia. Tem gente que toca gaita com os ossos...
Meu parceiro de preparativos sempre foi o Gappa, o velho Willians de Castro, de tantas aventuras. Depois das compras partimos direto para o sítio, abrindo a primeira cerveja do dia antes mesmo de acender a churrasqueira. É que o primeiro fogo deve ser o do churrasqueiro...
Aproveito para contar que eu, Gappa e o amigo Zé Iannela, dividimos por muitos anos o troféu de “Últimos dos Moicanos”, pois todos da nossa turma de adolescentes estavam casados e nós fomos ficando para trás, defendendo com teimosia a bandeira do celibato. Entreguei os pontos para Samanta e passamos a cobrar os outros dois. Anahí Melo conseguiu fazer com que o Zé Iannela não passasse de 2003 e o Gappa continua com bandeira na mão, prometendo que não passa do ano que vem. Mas qual ano que vem companheiro?
Apesar disso ele não perde o pique, está em todas as festas, de vez em quando vai para a capital reencontrar os salgadenses-paulistanos, emenda uma festa atrás da outra e, nestas oportunidades, nem dorme. Durante a festa do peão então, deixa para dormir uns dois ou três dias depois. A vasta cabeleira branca de Dona Geni, sua mãe que infelizmente já nos deixou, tinha um único motivo chamado Wilians Carlos de Castro.
Pois bem. Numa das vezes em que combinamos o churrasco, na sexta-feira à noite todo mundo se encontrou durante o rodeio para a divisão das tarefas. Os últimos viajores chegaram de madrugada e antes de dormir ainda deram uma passadinha no recinto para conferir os detalhes da festa.
Mesmo tendo ido para a cama por volta de quatro da matina, levantei-me no sábado pela manhã e parti para a cidade atrás das coisas do festejo. Quando apontei na praça defronte ao cemitério notei movimento no Velório Municipal, parei alguém para descobrir quem seria o salgadense que teria viajado fora-do-combinado. Para minha tristeza o finado era o Baianão, filho da Mariona Preta, personagens de histórias aqui contadas.
Então me pus a recordar, com tristeza, que Baianão fora meu companheiro de peladas pelos campinhos esburacados da cidade, lembrei-me da vaquinha que fizemos para comprar-lhe chuteiras indesejadas, pois aos quinze minutos de jogo ele as jogava para o lado e seguia descalço entortando os adversários. O coitado não tinha dinheiro nem para comprar uma sodinha e, quando viajava com a gente para jogos contra os times das redondezas, dividíamos suas despesas. (
CONFIRA AQUI)
Lembrei-me ainda que costumava revê-lo todo ano durante a Festa do Peão e ele sempre me filava umas cervejas. Revi uma cena passada um ano antes, quando sequer esperei que ele me pedisse para pagar-lhe uma gelada, ao encontrá-lo acompanhado do Serginho Preto, outro atleta daquele esquadrão. Rimos bastante quando os dois lembraram que na minha infância salgadense a turma me chamava de Carlinhos da Cotesp, porque minha casa era ao lado da sede da antiga empresa telefônica.
Remoendo as lembranças e a tristeza por ver partindo alguém que conheci de perto, ainda mais sabendo a vida difícil que ele teve, parei em frente à casa do Gappa e, antes de chamá-lo percebi Dona Geni sentada numa cadeira de alpendre, absorta em suas idéias, compenetrada, ar de preocupação e inconformismo. Chamei-lhe a atenção:
- Dona Geni, o Gappa taí?
Ela se levantou num salto e disparou na minha direção a causa de suas inquietações:
- O Baianão... O Baianão!
Surpreso, respondi-lhe que já sabia do acontecido. Pensei até que ela queria dizer que o Gappa já havia saído e teria ido ao velório. Mas ela continuou inquieta:
- O Baianão morreu de tanto beber!
Cheguei a pensar que ela estivesse variando um pouco. Eu queria notícias do Gappa, tínhamos um monte de coisas para fazer, e ela respondia às minhas perguntas com outro assunto, com algo que não tinha a ver com minha presença. Não entendi por que, inquirida sobre o destino do filho, me vinha ela com aquela preocupação sobre a morte do Baianão. Só quando perguntei de novo se o filho ainda estava dormindo foi que ela me esclareceu o tamanho de sua preocupação:
- Aquele safado chegou seis horas da manhã com a cara cheia e já saiu de novo. Desse jeito vai morrer que nem o Baianão!!!
Mas o desespero dela de nada adiantou. O danado bebeu o dia inteiro no nosso churrasco e ainda emendou a noite toda na Festa do Peão.